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Uma estratégia nacional para as terras raras brasileiras

Uma estratégia nacional para as terras raras brasileiras

A recente ofensiva de Donald Trump contra a economia brasileira abriu um debate que vai muito além do pretexto inicial. O discurso de tarifas punitivas, justificado pela atuação do Judiciário no julgamento de Bolsonaro e por supostas “relações comerciais injustas”, acabou revelando um tema mais profundo: o interesse norte-americano nas reservas brasileiras de terras raras e na instalação de data centers no país.

Não é coincidência que esses assuntos estejam hoje no centro das conversas entre Brasília e Washington, como admitiram recentemente o vice-presidente Geraldo Alckmin, o ministro da Fazenda Fernando Haddad e o encarregado de negócios dos EUA, Gabriel Escobar. Por trás da retórica errática de Trump há uma razão de Estado, compartilhada por democratas e republicanos: manter a hegemonia tecnológica, financeira e militar dos Estados Unidos. Biden também não foi alheio a isso, assim como Trump não pode ser.

As terras raras e a infraestrutura de dados compõem o núcleo estratégico dos novos setores da economia mundial. Trata-se de atividades que definem padrões de produção e acumulação, em torno das quais todos os outros ramos se organizam e, em maior ou menor medida, se subordinam. Quem controla esse núcleo concentra lucros extraordinários e, naturalmente, o poderio econômico, político e militar.

Hoje, esse núcleo se assenta sobre dois blocos: tecnologias de dados (com a Inteligência Artificial como expressão mais sofisticada) e energia renovável (produção, armazenamento e novos materiais).

Estes dois blocos de inovações radicais já estão redesenhando a divisão internacional do trabalho, criando novos centros de poder e reforçando periferias. O Brasil, com suas reservas minerais, não pode se imaginar fora desse tabuleiro.

O peso das terras raras

Pouco conhecidas até pouco tempo atrás, as terras raras — 17 elementos químicos — tornaram-se tema recorrente em entrevistas e reportagens. Junto de outros minerais críticos como lítio, cobalto, grafite, cobre e germânio, são a base de cadeias de valor estratégicas: turbinas eólicas, energia solar, veículos elétricos, semicondutores, tecnologias de defesa. Os nutrientes básicos dos novos padrões tecnológicos.

Segundo dados o Serviço Geológico dos EUA (USGS), a China detém quase metade das reservas mapeadas no mundo (48%, cerca de 44 milhões de toneladas), seguida pelo Brasil, com 23% (21 Mt). Depois vêm Índia, Austrália, Rússia, Vietnã, EUA e Groenlândia, com percentuais bem menores.

O peso geopolítico desses números é evidente: os EUA, em busca de alternativas à dependência chinesa, veem no Brasil um ponto fundamental de contraposição. Ainda mais porque a China domina não só as reservas, mas também a produção (70% do total em 2024), o refino (91%) e praticamente todo o mercado de ímãs permanentes — peça-chave para veículos elétricos, turbinas e aviões. Os EUA, em comparação, são coadjuvantes: 11% da produção e refino, participação ínfima em ímãs. O Brasil, apesar da segunda maior reserva mundial, produziu em 2024 apenas 0,005% do total global. Um potencial de extração praticamente inexplorado.

O que fazer com esse potencial?

É nítida a posição privilegiada do Brasil no contexto de disputa por esses minérios – o quais, reiteramos, compõem o núcleo estratégico das novas tecnologias. O contexto de fragilidade dos Estados Unidos neste campo também justifica a investida. A questão central para nós, brasileiros, é o que fazer com este enorme potencial. Entregar a exploração das terras raras a empresas estrangeiras, como moeda de troca em negociações tarifárias com Washington, seria um erro grave — e exatamente o contrário do que as grandes potências vêm fazendo.

Como é de praxe em setores estratégicos e emergentes, o controle nacional é a regra nas terras raras; um setor que se caracteriza, ademais, por uma alta complexidade técnica e baixas taxas de retorno em comparação com outros minerais.

Na China, o setor é controlado por estatais nacionais ou provinciais com laços diretos com o Estado, como a Northern Rare Earth e a China Rare Earth Group. O recente estabelecimento de cotas de exportação de terras raras mostra como o país governado por Xi Jinping tem clara noção da importância estratégica do controle desses minérios.

Em julho deste ano, os EUA seguiram caminho semelhante: o Departamento de Defesa investiu 400 milhões de dólares na MP Materials – a maior empresa de mineração e refino de terras raras do país –tornando-se seu maior acionista, além de conceder empréstimos e garantir a compra de 70% da produção futura de ímãs para fins civis e militares. França e Coreia do Sul também avançam em direção a um controle estatal mais firme da cadeia.

Neste contexto, ao Brasil, simplesmente abrir mão desse potencial para multinacionais ou grandes grupos privados nacionais significaria repetir o velho padrão: mineração intensiva, exportação de matéria-prima sem valor agregado, lucros rápidos para poucos e passivo ambiental para todos. Seria aprofundar a dependência tecnológica e reforçar a primarização da economia — um “neoextrativismo” travestido de modernidade.

Como já mencionamos, a cadeia de valor das terras raras é extremamente complexa: já primeira etapa, de mineração, são necessários ao menos 50 processos para a transformação das argilas ou areias de terras raras em matérias-primas viáveis. Essas aplicações, por sua vez, envolvem conhecimentos e tecnologia de ponta que o Brasil, assolado por quase 30 anos de regressão produtiva e tecnológica na indústria, não possui.

Uma estratégia nacional

O caminho oposto seria a criação de uma empresa estatal de terras raras, com monopólio sobre extração e refino das principais jazidas. Mineradoras hoje controladas por fundos estrangeiros, como a Serra Verde, deveriam ser transferidas ao Estado. Já vai longe a década de 90, e quem ainda se erubesce ao reivindicar a propriedade estatal sobre recursos estratégicos do próprio país deve aceitar que o mundo já não é o mesmo. Só uma estatal poderia regular o ritmo da exploração segundo os interesses nacionais e direcionar parte da renda mineral para universidades públicas e centros de pesquisa, criando capacidades próprias em alta tecnologia.

O capital privado não ficaria de fora do arranjo aqui proposto: empresas nacionais poderiam fornecer máquinas, equipamentos, serviços e insumos, com apoio do BNDES e da Finep para o financiamento direcionado à criação de capacidade nacionais, inclusive com participação acionária do Estado ou capital de risco quando necessário. Um sistema de compras públicas poderia integrar essa rede aos objetivos nacionais.

Quanto às etapas mais complexas — produção de ímãs permanentes, ligas especiais, componentes aeroespaciais —, parcerias com empresas estrangeiras podem ser inevitáveis no curto prazo, desde que incluam transferência de tecnologia obrigatória e articulação com cadeias produtivas locais, como o setor aeroespacial brasileiro. O monopólio estatal da matéria-prima seria a chave para garantir um poder de barganha adequado na negociação.

Nesse desenho, a China surge como parceira natural: domina toda a cadeia de valor das terras raras, integra os BRICS com o Brasil e tem interesse em limitar o acesso dos EUA a novos fornecedores. Mas seria preciso testar até que ponto Pequim aceitaria parcerias que ultrapassem o fornecimento de commodities e realmente incluam transferência tecnológica. Até o momento, mesmo o investimento manufatureiro chinês no Brasil tem criado poucas articulações com fornecedores nacionais.

Ampliar a discussão para o plano latino-americano pode aumentar ainda mais o poder de barganha. Além das terras raras brasileiras, a região concentra reservas estratégicas de cobre (Chile e Peru), lítio (Argentina, Bolívia e Chile), níquel, cobalto e grafite. Uma articulação latino-americana, talvez via CELAC, poderia não só fortalecer cada país, mas também renovar o projeto de integração regional com um horizonte concreto: o uso soberano dos minerais críticos para disputar lugar na economia do futuro.

CartaCapital

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