Lucros da JMJ vão apoiar projetos com 800 mil euros por ano

Vai arrancar a 16 de outubro deste ano o primeiro concurso para apoiar projetos e iniciativas de jovens com as receitas obtidas pela Igreja Católica com a organização da Jornada Mundial da Juventude de Lisboa (JMJ 2023), revelou ao Observador bispo Alexandre Palma, presidente da agora rebatizada Fundação Jornada — que planeia distribuir cerca de 800 mil euros todos os anos em apoios a projetos de juventude como forma de continuar o legado da JMJ, que juntou em Lisboa o Papa Francisco e cerca de 1,5 milhões de jovens católicos de todo o mundo em agosto de 2023.
A primeira edição portuguesa da JMJ, um dos maiores eventos da Igreja Católica a nível global, resultou de uma organização tripartida entre a Igreja (representada pela Fundação JMJ, criada para o efeito), o Estado central e várias autarquias da Grande Lisboa. Do lado da Igreja, a Fundação JMJ teve um resultado líquido positivo de cerca de 35 milhões de euros, que a Igreja não tem classificado como “lucros”, uma vez que não desenvolve uma atividade comercial. Desde o início que a organização da JMJ, liderada anteriormente pelo cardeal Américo Aguiar, prometeu que cada cêntimo de saldo positivo seria usado para investir em projetos de jovens em Portugal, mas o modelo concreto ainda não era totalmente conhecido.
Em setembro do ano passado, o Observador noticiou que a Fundação, agora liderada por Alexandre Palma, bispo auxiliar de Lisboa, iria seguir o modelo de financiamento clássico de outras fundações, como a Gulbenkian ou a Champalimaud: conservar o fundo através de investimentos e distribuir anualmente os proveitos, o que permitirá, a longo prazo, entregar à sociedade civil um montante superior aos 35 milhões de euros iniciais. Este modelo foi considerado pela Igreja mais útil do que a mera distribuição dos 35 milhões de euros por diferentes projetos, uma vez que permite uma maior consistência destes apoios no tempo. Numa primeira fase, como escreveu o Observador no ano passado, o que estava em cima da mesa era que a Fundação distribuísse, pelo menos, meio milhão de euros por ano.
Agora, esta perspetiva foi revista em alta. “Prevemos poder distribuir na ordem dos 800 mil euros por ano para projetos em duas rondas de concursos por ano”, explica o bispo Alexandre Palma, sublinhando que isso é o que está previsto a partir do ano de 2026. Antes disso, já em outubro deste ano, arranca um concurso piloto, desenhado para “testar a ideia junto dos jovens”, com um montante menor: “Nesta primeira ronda temos um cômputo geral de financiamento disponível de 360 mil euros, sendo que financiaremos cada projeto até 30 mil euros.”

▲ A Fundação Jornada sofreu uma mudança de nome e de imagem gráfica para uma nova fase em que já não vai organizar um evento, mas apoiar os jovens portugueses
DIOGO VENTURA/OBSERVADOR
A apresentação deste mecanismo de financiamento representa, segundo o bispo, uma transformação na própria essência da Fundação. Depois de uma primeira fase em que foi, essencialmente, uma organizadora de eventos com a missão de preparar a JMJ, a instituição entra agora numa segunda fase em que se assume, principalmente, como “parceira” dos jovens. “A JMJ deixou-nos este tesouro material, que nos permite, aos poucos, continuar a fazer o bem. É um projeto de capacitação da juventude, de confiança na juventude, de dar a uma geração, de fazer deles agentes de esperança na sociedade”, frisa. “Nós podemos ser um parceiro nisto, não vamos fazer tudo. Esta é, se quisermos, uma parte do legado material da JMJ 2023.”
“A Fundação propõe-se pegar no legado da JMJ Lisboa 2023 e, de alguma maneira, projetá-lo para o futuro”, sustenta Alexandre Palma, explicando que, além do legado material, a JMJ deixou também um “legado imaterial“, que inclui “o enorme protagonismo dos jovens” numa “sociedade que nem sempre é capaz de dar palco, força e risco aos jovens”, bem como “as palavras do Papa Francisco” em Lisboa, que têm servido de “bússola” à ação da Fundação e que representam “o testamento que o Papa Francisco deixou aos jovens”.
"Prevemos poder distribuir na ordem dos 800 mil euros por ano para projetos em duas rondas de concursos por ano. Nesta primeira ronda temos um cômputo geral de financiamento disponível de 360 mil euros, sendo que financiaremos cada projeto até 30 mil euros."
Alexandre Palma, presidente da Fundação Jornada
Ao mesmo tempo, a Fundação JMJ 2023 muda agora de nome para Fundação Jornada, com o objetivo de “libertar” a marca JMJ para o evento, que continuará no futuro — a próxima edição está agendada para 2027 na Coreia do Sul e deverá também contar com a participação de jovens portugueses — e que sinaliza “a ligação ao passado e a abertura ao futuro usando a palavra Jornada: recolhe dessa experiência do passado, mas, ao mesmo tempo, sinaliza uma Jornada que não acabou, mas que continuou, essa ideia de caminho que continua e que não ficou fechado em 2023”.
A direção executiva deste trabalho está nas mãos de Marta Figueiredo, gestora de 36 anos com experiência em vários projetos de juventude e em negócios sociais. Numa conversa com o Observador numa sala ainda largamente vazia na nova sede da Fundação, em Lisboa, a responsável diz que, depois de uma fase em que a Fundação se empenhou na organização logística de um mega-evento, agora é o tempo de procurar “identificar os grandes desafios que os jovens enfrentam” e desenhar “um processo para lhes responder”, apoiando “projetos focados nos jovens ou liderados por jovens”.
“O nosso foco é trabalhar, capacitar e impulsionar a juventude em Portugal. Como é que o vamos fazer? Vamos dotar os jovens dos recursos, através de apoio financeiro, mas também vamos ter uma componente de capacitação e acompanhamento desses projetos e desses jovens”, sustenta Marta Figueiredo. “Não queremos ser apenas financiadores de jovens ou espectadores da ação dos jovens“, acrescenta o bispo Alexandre Palma. “Queremos ser companheiros na jornada que os jovens continuam a fazer. Seja com ideias mais seminais ou instituições que já estão testadas no terreno e querem escalar uma parte da sua atividade. Queremos ser, nesta fase, uma marca parceira. Não queremos tutelar a atividade dos jovens, queremos ser parceiros.”

▲ O bispo Alexandre Palma sucedeu ao cardeal Américo Aguiar na liderança da fundação que organizou a Jornada Mundial da Juventude de 2023
DIOGO VENTURA/OBSERVADOR
Marta Figueiredo remete para 16 de outubro, data do lançamento do primeiro concurso, os pormenores técnicos, mas explica que a ideia é apoiar projetos que se enquadrem num conjunto de áreas-chave que resultam do diagnóstico feito pelos próprios jovens acerca dos grandes desafios da juventude contemporânea. Um exemplo claro é o texto da Via-Sacra da JMJ 2023, realizada no Parque Eduardo VII na presença do Papa Francisco no dia 4 de agosto de 2023. Nessa celebração, foram evocados alguns dos grandes problemas enfrentados pelos jovens de hoje, incluindo as dificuldades financeiras e de trabalho, a violência no namoro, a intolerância, a dependência das tecnologias, a saúde mental, as alterações climáticas, as drogas, a violência, a guerra, a discriminação ou o medo do futuro.
Esse diagnóstico, sublinha Marta Figueiredo, é complementado pela realidade empírica atual. “Um em cada quatro jovens sofre com a saúde mental e mais de 75% dos jovens têm ansiedade em relação ao seu futuro”, exemplifica.
Por isso, a Fundação Jornada concebeu um projeto em torno de três eixos principais. O primeiro é a “espiritualidade e a saúde mental”, destinado a “projetos católicos ou não católicos” focados na “dimensão mais integral da interioridade dos jovens”, diz a gestora. O segundo é a área da “aprendizagem cognitiva, a educação, a formação, os programas de liderança e as iniciativas que dotem os jovens das competências de que precisam para enfrentar o futuro”. Por fim, o terceiro eixo foca-se na “cidadania e participação ativa dos jovens na sociedade e na Igreja”, procurando apoiar projetos e iniciativas dos próprios jovens com “as mais diversas naturezas”, incluindo na ação com pessoas com deficiência, sem-abrigo ou idosas. A ideia, explica Marta Figueiredo, é “que os próprios jovens nos apresentem os projetos que eles próprios querem empreender na sociedade para gerar impacto“.
"No futuro, as diferentes calls poderão ter contornos diferentes. Poderão ser focadas em projetos que estejam numa fase mais avançada e queiram fazer um processo de escala, em que podemos ter tectos maiores, chegar aos 75 mil euros ou aos 100 mil euros, ou até ter apoios plurianuais. Mas, este ano, a ideia é apoiar projetos entre os seis e os 12 meses."
Marta Figueiredo, diretora-executiva da Fundação Jornada
Segundo a gestora, o primeiro concurso será destinado exclusivamente a “entidades que estejam legalmente constituídas em Portugal, focadas nos jovens ou lideradas por jovens, que estejam alinhadas com as três áreas estruturais de intervenção da Fundação” — e os projetos devem ser dirigidos a jovens entre os 15 e os 35 anos residentes em Portugal.
Ainda assim, não está excluída a possibilidade de serem apoiadas ideias de grupos de jovens que se formem de modo espontâneo. Nesses casos, a Fundação ajudará a encontrar uma entidade que possa “incubar esses projetos” — e será essa entidade a receber o financiamento. Tanto poderão ser apoiados projetos “que estejam numa fase inicial e embrionária” como projetos que já estejam implementados no terreno e precisem de ajuda para “um salto de maior profissionalização”, destaca Marta Figueiredo. “No futuro, as diferentes calls poderão ter contornos diferentes“, acrescenta. “Poderão ser focadas em projetos que estejam numa fase mais avançada e queiram fazer um processo de escala, em que podemos ter tetos maiores, chegar aos 75 mil euros ou aos 100 mil euros, ou até ter apoios plurianuais. Mas, este ano, a ideia é apoiar projetos entre os seis e os 12 meses.”
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Apesar da natureza eclesiástica da Fundação Jornada — é uma instituição canónica, dependente do Patriarcado de Lisboa —, os fundos não serão exclusivamente distribuídos a projetos da Igreja Católica. Segundo Alexandre Palma, “os projetos têm de estar sintonizados com os valores da Igreja Católica“, mas não têm necessariamente de ser realizados por grupos ou instituições católicas.
“A JMJ mostrou um equilíbrio difícil, que gostaríamos muito de agarrar também por via da Fundação: a identidade católica pode ser afirmativa sem ser exclusiva. A JMJ conseguiu fazer isto”, afirma o bispo. “Foi claramente um evento católico, tinha o Papa, tinha bispos, tinha missas, mas foi no espaço público, não como limitação, mas como abertura, como convite a quem não é crente ou a quem procura Deus a vir encontrá-lo na Igreja — ou a quem está alinhado com um conjunto de valores de bem comum, que nós encontramos fundados no Evangelho, mas que admito que outras lógicas o possam encontrar fundados noutro lugar. Mas podemos dar as mãos. Estas causas são transversais à sociedade e a Igreja está também aí.”

▲ Marta Figueiredo, gestora de 36 anos, é a diretora-executiva da Fundação Jornada
DIOGO VENTURA/OBSERVADOR
Por isso, garante Alexandre Palma, não tem de haver uma “pertença” à Igreja, mas “tem de haver algum alinhamento” com os valores centrais. “Um exemplo é a área da educação“, acrescenta o bispo, sublinhando que a Fundação Jornada poderia apoiar, por exemplo, “um projeto liderado por jovens que ajude no percurso escolar de jovens, se tiver qualidade, consistência e objetivos”. Alexandre Palma destaca que “os estudos empíricos mostram que um euro investido na área da educação e na formação tem no longo prazo um efeito multiplicador para benefício da sociedade e da Igreja”.
Tanto Alexandre Palma como Marta Figueiredo dizem querer evitar dar exemplos demasiado concretos de projetos que possam vir a ser apoiados pela Fundação Jornada, de modo a não excluir qualquer tipo de ideia. A diretora executiva dá, ainda assim, um conjunto de exemplos mais alargados: “Se pensarmos num grupo de jovens que queira lançar um programa de voluntariado junto de uma população mais desfavorecida, é válido. Um tema muito central é tudo o que tenha a ver com a dependência digital, programas que ajudem os jovens a ter mais literacia digital, a navegar melhor pelas redes sociais, a combater as dependências. Todo o tema da saúde mental, mas também academias de formação e liderança, centros de apoio ao estudo e ao desenvolvimento de novas competências, projetos que promovam a participação cívica e ativa dos jovens na sociedade ou projetos que os jovens queiram dinamizar junto de públicos vulneráveis.”
Por outro lado, os projetos candidatos terão também de apresentar formas de avaliar o impacto do projeto. Tudo isto será tido em conta pelo júri que irá selecionar os casos — um júri diferente em cada ronda, composto também por pessoas externas à Fundação, de diferentes áreas de formação.
Nos cofres da Igreja Católica ficaram, depois da realização da JMJ com o Papa Francisco, cerca de 35 milhões de euros. Para Alexandre Palma, este resultado deve-se não só ao “número extraordinário de peregrinos” que acorreu ao evento, como também ao grande número de voluntários presentes, à importante participação da sociedade portuguesa (incluindo entidades públicas e privadas) e à “gestão muito rigorosa e muito transparente” da anterior liderança da Fundação, presidida pelo cardeal Américo Aguiar.
“No pós-2023, temos aqui um enorme bem. Este fundo é um bem. Não é um incómodo. Intencionalmente, não uso a palavra ‘lucro’ porque acho que não exercemos uma atividade comercial“, afirma o bispo. Consciente de que no passado houve polémicas em torno do dinheiro gasto no evento (o caso do altar-palco foi o mais controverso) e de que existe sempre quem olhe de lado para a relação da Igreja Católica com o dinheiro, Alexandre Palma diz saber que a Fundação precisa “de dar sinais de confiança à sociedade civil e à Igreja”.
“Estamos aqui a apresentar um sonho. Sei que há pessoas que vão acreditar e outras que vão dizer ‘mostrem lá’. Acho isso completamente razoável”, afirma o bispo, sublinhando que a direção da Fundação Jornada pretende “rentabilizar o património da Fundação” através de uma “gestão prudente do fundo”.

▲ A rebatizada Fundação Jornada tem como lema "A fé move, a ação multiplica"
DIOGO VENTURA/OBSERVADOR
Sublinhando que a direção da Fundação é composta por pessoas com “diferentes especialidades profissionais e conhecimentos em determinadas áreas que são nucleares para uma boa gestão”, Alexandre Palma diz ainda que, na área financeira, sempre que é necessário, a Fundação recorre “ao aconselhamento de peritos na área”. De acordo com o bispo, a Fundação Jornada está a seguir as melhores práticas que outras fundações também já adotaram em termos de investimentos, nomeadamente optando por investimentos mais conservadores com o foco no longo prazo. “As contas serão sempre publicadas e ficarão acessíveis no nosso site. A transparência é um valor que herdámos da JMJ e que queremos prolongar.”
Nesse sentido, acrescenta o bispo, “a direção fixou como horizonte poder libertar 85% do rendimento anual para o apoio aos jovens”. Isto significa que a Fundação deverá “consumir muito pouco na sua infraestrutura interna”, trabalhando mais “para fora” do que “para si” e tendo uma estrutura “leve”. De resto, a Fundação — que chegou a ter mais de uma centena de pessoas a trabalhar durante a organização da JMJ — conta agora com apenas uma mão cheia de trabalhadores, que se instalaram recentemente no edifício da Fundação Maria Droste, que acolhe jovens raparigas em situação de risco e onde estão também sediadas várias outras iniciativas de apoio à juventude.
observador