Por que a Coreia do Sul está julgando novamente um chefe de espionagem que assassinou um presidente?

Dois tiros.
É assim que Yoo Seok-sul começa a relatar a noite de sexta-feira, 26 de outubro de 1979.
Ex-segurança da Agência Central de Inteligência da Coreia, ou KCIA, como era conhecida a divisão de espionagem da Coreia do Sul, Yoo tem muitas histórias para contar. Mas esta é talvez a mais infame.
Ele se lembra da hora — quase 19h40 — e de onde estava sentado — na sala de descanso. Ele descansava após seu turno guardando a entrada do complexo de prédios baixos onde o presidente Park Chung-hee recebia seus assessores de maior confiança. Eles o chamavam de "casa segura".
Aos 70 anos, magro e com olhar penetrante, Yoo fala hesitante no início, mas logo se lembra. Após os primeiros tiros, mais tiros se seguiram, conta ele. Os guardas estavam em alerta máximo, mas aguardavam ordens do lado de fora. A equipe de segurança do presidente estava lá dentro, junto com os principais agentes da KCIA.
Então, o chefe de Yoo, um agente da KCIA que supervisionava a segurança do esconderijo, saiu. "Ele veio e me pediu para enterrar algo no jardim." Eram duas armas, balas e um par de sapatos. Perturbado, Yoo seguiu as ordens, conta ele.
Ele não sabia quem havia sido baleado e não perguntou.
"Nunca imaginei que fosse o presidente."
As armas que Yoo enterrou foram usadas para assassinar Park Chung-hee, que governou a Coreia do Sul pelos 18 anos anteriores, mais tempo do que qualquer presidente antes ou depois. O homem que atirou nele era seu amigo de longa data Kim Jae-gyu, que comandava a temida KCIA, um pilar da ditadura de Park.
Aquela sexta-feira abalou a Coreia do Sul, pondo fim ao regime sufocante de Park Chung-hee e inaugurando mais uma década de regime militar. Kim foi executado por insurreição, juntamente com outros cinco.
Agora, 46 anos depois, aquela noite volta aos holofotes, com um novo julgamento de Kim Jae-gyu para determinar se suas ações constituíram traição. Ele continua sendo uma figura profundamente polarizadora – alguns o veem como um assassino cego pelo poder e pela ambição, outros como um patriota que se sacrificou para colocar a Coreia do Sul no caminho da democracia. O presidente que ele matou não é menos controverso, elogiado pela ascensão econômica de seu país e vilipendiado por seu regime autoritário.
A família de Kim lutou por um novo julgamento, argumentando que ele não pode ser lembrado como um traidor. Agora, eles terão seu dia no Tribunal Superior de Seul – as audiências começaram na quarta-feira – no momento em que o presidente Yoon Suk Yeol, que sofreu impeachment, vai a julgamento pela mesma acusação que levou Kim à forca.
A ordem de lei marcial de Yoon em dezembro passado durou pouco, mas levantou questões sobre a democracia sul-coreana — e isso pode influenciar a maneira como o país vê o homem que matou a tiros um ditador que, segundo ele, estava prestes a desencadear uma carnificina.
Kim estava tentando tomar o poder para si ou desencadear uma revolução, como ele alegou no tribunal?

Quando a notícia do tiroteio foi divulgada pela manhã, causou comoção na Coreia do Sul. As primeiras informações o classificaram como "acidental".
O que restou da comitiva de Park tentou entender o que havia acontecido. Kim era um aliado próximo desde que Park tomou o poder em um golpe em 1961. Eles compartilhavam a mesma cidade natal e haviam começado juntos na academia militar.
O jornalista veterano Cho Gab-je reconhece que Kim pareceu desconfortável com algumas das ações de Park, mas "não há registros de que Kim realmente tenha agido com base nessas preocupações, nenhuma evidência de que ele tenha libertado prisioneiros políticos, entrado em conflito com Park ou apresentado objeções formais".
Kim disse ao tribunal que pensou em matar Park pelo menos três vezes. Mas a história mostra que ele apoiou Park enquanto ele reforçava seu controle, abolindo as eleições presidenciais diretas e os limites de mandatos, permitindo-lhe controlar a Assembleia Nacional e até mesmo suspender direitos constitucionais.
"Meu irmão nunca foi o tipo de pessoa que cometeria tal ato só para se tornar presidente", insiste sua irmã Kim Jung-sook, que agora tem 86 anos.
Mas ele comandava a KCIA, que era famosa por prender, torturar e até incriminar estudantes inocentes, dissidentes e figuras da oposição com acusações falsas.
"Eles torturavam pessoas, fabricavam acusações e as prendiam... e se você criticasse isso, você também seria preso", diz o padre Ham Se-woong, que foi preso duas vezes na década de 1970 por criticar o governo.
Kim não era um salvador que muitos pudessem aceitar. Mas esse foi o papel que ele assumiu, de acordo com transcrições judiciais que não foram amplamente divulgadas na época. Ele disse aos juízes que acreditava ser imperativo deter Park, cuja crueldade poderia mergulhar a Coreia do Sul no caos e custar-lhes um aliado crucial, os Estados Unidos.
"Não desejo implorar pela minha vida, pois encontrei uma causa pela qual morrer", disse ele, embora tenha pedido ao tribunal que poupasse seus homens que seguiam suas ordens — "ovelhas inocentes", como os chamou. Disse que esperava abrir caminho para uma transição pacífica de poder, algo que até então havia escapado ao seu país.
Ao ouvir isso na época, até mesmo um crítico feroz como o Padre Ham tentou lançar uma campanha a seu favor. "Ele queria evitar mais derramamento de sangue. É por isso que tivemos que salvá-lo", diz ele.
O Padre Ham acabou preso novamente por seus esforços, já que o julgamento se tornou um assunto delicado. O país estava sob lei marcial. Dias após o início do julgamento – em 12 de dezembro – o homem que liderou a investigação do assassinato, o General Chun Doo-hwan, tomou o poder em um golpe.

Os procedimentos no tribunal militar avançaram a passos largos. Em 20 de dezembro, Kim foi condenado por tentativa de tomada de poder por meio de assassinato, e outros seis por auxiliá-lo. Yoo foi condenado a três anos de prisão por esconder as armas.
Em 20 de maio do ano seguinte, Kim perdeu seu recurso final. Quatro dias depois, ele foi enforcado, juntamente com outros quatro. Um foi poupado e outro havia sido executado anteriormente. Kim morreu enquanto o exército reprimia brutalmente uma revolta pró-democracia, matando 166 civis na cidade de Gwangju.
"Tive a impressão de que Chun Doo-hwan estava tentando encerrar rapidamente qualquer coisa relacionada ao regime anterior para tomar o poder para si", diz Kim Jung-sook.
Ela conta que viu o irmão apenas uma vez durante todo esse tempo, uma semana antes de ele ser executado: "Acho que ele sentiu que aquela poderia ser a última vez. Então, curvou-se profundamente diante da minha mãe como uma despedida."
Yoo sobreviveu, mas conta que, depois de ser libertado, foi perseguido por anos: "Não consegui emprego. Mesmo quando voltei para minha cidade natal, eles continuaram me seguindo. Não pude dizer uma palavra sobre o caso." Agora, ele trabalha como manobrista em um estacionamento particular nos arredores de Seul.
A Sra. Kim diz que sua família só se manifestou há cerca de 10 anos. Depois que a Coreia do Sul se tornou uma democracia, a imagem de Park se recuperou, aprimorada pelo tempo e pela riqueza. Sua filha tornou-se presidente, frequentemente defendendo seu legado por seu histórico econômico.
Foi sua queda — após grandes protestos sobre um escândalo de corrupção — que abriu as portas para revisitar a condenação de Kim Jae-gyu.

"Este caso jamais deveria ter ido a um tribunal militar, porque o assassinato ocorreu antes da decretação da lei marcial", afirma Lee Sang-hee, advogada responsável pelo novo julgamento. Ela acrescenta que as "transcrições desleixadas" teriam influenciado o recurso, já que a defesa não teve permissão para gravar os autos.
"Quando analisei os documentos, não consegui entender como ele pôde ser condenado por insurreição quando havia tão poucas provas. E, acima de tudo, houve tortura", diz ela, o que o tribunal citou como um motivo válido ao concordar com um novo julgamento em fevereiro.
O tribunal aceitou a declaração de Kim, apresentada em seu recurso malsucedido em 1980, alegando que "os investigadores me espancaram indiscriminadamente e usaram tortura elétrica enrolando um fio telefônico EE8 em meus dedos".
Relatos da época alegavam que a esposa de Kim Jae-gyu também havia sido detida e torturada, junto com seu cunhado e irmãos, o que as autoridades da época negaram.
Agora com 90 anos, sua esposa sempre foi contra um novo julgamento.
"Ela nunca falou sobre o que passou e ainda treme", diz Kim Jung-sook, irmã do chefe da espionagem.
A Sra. Kim é resoluta na defesa do irmão, enfatizando repetidamente que "ele era um homem íntegro".
"Porque acreditamos que ele não matou o presidente e seu chefe de segurança para ganho pessoal, conseguimos suportar tudo isso."

O chefe de segurança era Cha Ji-cheol, que estava se aproximando de Park e frequentemente entrava em conflito com Kim enquanto os dois homens disputavam a atenção do presidente.
Nas semanas que antecederam o assassinato, eles divergiram sobre como lidar com Kim Young-sam, um líder da oposição franco que Park via como uma ameaça. Em entrevista ao New York Times, o líder da oposição pediu aos EUA que acabassem com a ditadura de Park. A Assembleia Nacional, controlada por Park, o expulsou.
A decisão desencadeou enormes protestos nos redutos de Kim Young-Sam. Cha queria reprimir a revolta, enquanto Kim Jae-gyu recomendava cautela, o que também tranquilizaria Washington, que estava cada vez mais impaciente com o governo de Park.
Kim disse ao tribunal que alertou contra atirar nos manifestantes, pois isso só aumentaria a raiva. Cha respondeu: "Três milhões morreram no Camboja, e nada aconteceu. Se matarmos um milhão de manifestantes, ficaremos bem".
Naquela noite, no esconderijo, a emissora pública informou que o embaixador dos EUA iria se encontrar com Kim Young-sam.
Park, irritado, criticou Kim Jae-gyu por não prender o líder da oposição. Quando Kim reagiu, segundo o tribunal, Park retrucou: "A agência deve ser temida, deve processar aqueles que merecem."

Sentaram-se frente a frente, tomando uísque e compartilhando uma refeição. Park sentou-se entre duas mulheres, uma cantora popular e uma jovem modelo. Cha e o chefe de gabinete de Park também estavam lá.
As trocas concisas continuaram e, no meio de uma canção de amor, Kim Jae-gyu disse que sacou a arma, apontou para Park e disse que ele precisava mudar sua política: "Senhor, o senhor deveria abordar as coisas com uma visão mais magnânima."
Virando-se para Cha, chocado, ele praguejou enquanto puxava o gatilho, ferindo-o na mão enquanto Cha tentava bloquear o tiro. Então Kim atirou no peito de Park. Do lado de fora, seguindo suas ordens, agentes da KCIA mataram a tiros a equipe de segurança do presidente — dois estavam jantando e dois estavam de prontidão.
Kim tentou atirar no presidente novamente, mas a pistola apresentou defeito. Ele correu até um de seus homens, que lhe entregou um revólver. Ao retornar, matou Cha em fuga, caminhou em direção a Park, que estava encostado na modelo enquanto sangrava, e atirou em sua cabeça.
As duas mulheres saíram ilesas após serem pagas para permanecerem em silêncio. O chefe de gabinete do presidente nunca foi alvo de ataques.
Kim então foi para o prédio ao lado, onde o chefe do exército que ele havia convocado anteriormente o aguardava. Os homens partiram em um carro para o quartel-general da KCIA.
É provável que ele não tenha discutido com Kim – mesmo descalço e suspeitosamente abalado, Kim era poderoso, e seus homens guardavam o complexo. Mas, no caminho, ele foi persuadido a ir ao quartel-general do exército, onde foi preso logo depois da meia-noite.
Kim disse ao tribunal que planejava usar o exército, talvez até impor a lei marcial, para completar a "revolução" e a transição para a democracia.
Este é o ponto crucial do novo julgamento. A acusação argumentou que se tratou de um golpe premeditado, enquanto Kim alegou motivos muito mais nobres.
Mas os céticos apontam para a falta de planejamento. A arma que emperrou foi retirada de um cofre antes do jantar, havia testemunhas suficientes para inviabilizar a trama e ele não parecia ter uma estratégia para sua "revolução". Ele nem sequer chegou à sede da KCIA.

Dizem que pode muito bem ter sido um ato impulsivo de vingança de um homem cujo poder estava diminuindo.
Foi o que alegou o general do exército que investigava os assassinatos dois dias depois: Kim, o segundo depois do presidente, tinha muito a perder, já que Park o afastou em favor de Cha Ji-cheol.
No mês seguinte, ele também acusou Kim de tentar um golpe.
"Para que uma acusação de insurreição seja provada, o acusado deve interromper à força o funcionamento das instituições constitucionais, mas isso não aconteceu neste caso", diz o advogado Lee Sang-hee.
Diferentemente do caso do presidente Yoon, que sofreu impeachment — em que o tribunal decidirá se ele ordenou que os militares bloqueassem os procedimentos parlamentares —, não há evidências de que Kim Jae-gyu tentou tomar o controle das instituições estatais, ela argumenta.
Para a Coreia do Sul, porém, o novo julgamento é mais do que isso. Muitos o veem como um momento decisivo para refletir sobre a trajetória de uma democracia ameaçada há apenas seis meses.
É também uma oportunidade para reavaliar Park Chung-hee, cujo legado alguns consideram exagerado. "Suas conquistas foram reais, mas seus defeitos também", diz Kim Duol, professor de economia na Universidade Myungji. "Seria possível o crescimento da Coreia do Sul sem um regime tão autoritário?"
A família de Kim espera que seu novo julgamento lance uma luz mais branda sobre seu legado. Matar Park foi "uma decisão dolorosa", disse Kim ao tribunal, mas ele "atirou no coração de Yusin [o regime] com o coração de uma fera".
Será que isso basta para fazer do ex-chefe de espionagem um herói? Essa é uma pergunta que o tribunal não pode responder.
BBC