O Pequeno Manual do Civilizador: Em terra nuclear, quem tem ogiva é rei

Conhecem a geografia do poder? Não se exige conhecimento aprofundado de doutoramento, nem estudo detalhado de tratados. Este fatalismo de superlativo cinismo explica-se com simplicidade de berço. Uns têm bombas nucleares, outros não podem tê-las. Uns bombardeiam, outros são bombardeados. Tudo depende da mão que segura a ogiva. Quem tem pode distribuir tabefes sem temer grande dentada; quem não tem, sujeita-se à humilhação do corretivo, isto se o castigo não virar aniquilação.
No palco do mundo, a encenação faz-se de absurdo. Heróis e vilões misturam-se e trocam de vestes e máscaras, num transformismo grotesco de cabaré, onde o espetáculo não encanta, mas assusta. Eis o show onde quase todo o Ocidente se alinha ao lado de um Estado cujo primeiro-ministro tem um mandato de captura internacional pelo tribunal criado para julgar os piores crimes da Humanidade. Juntos de mãos dadas com um facínora que vai apontando o dedo a papões, enquanto ordena um genocídio em Gaza. Já o outro grande parceiro do velho continente, aliado de décadas e de todas as guerras, já anunciou várias vezes que pouco lhe interessa a soberania europeia. Se um dia regurgita a ameaça de invadir a Gronelândia, noutro diz que a UE foi inventada só para o tramar. Será Síndrome de Estocolmo ou será apego à sonsice de continuarmos a fingir que somos todos patetas, na versão europeia do americanismo “useful idiots”?
Fala-se em Irão e logo nos estala o tímpano com o guincho ocidental: mãos nos cabelos, pânico devidamente coreografado, como se Satanás nos estivesse a invadir o quintal. Líderes europeus alinham-se em fila, publicam comunicados sincronizados, todos eles cozinhados na mesma fôrma, numa falta de originalidade que dificilmente se explica com coincidências. Atiram-nos ao nariz que o Irão não pode ter armas nucleares, que as usaria para varrer a “única democracia do Médio Oriente” e depois talvez o mundo. Mas Israel tem entre 90 e 300 ogivas nucleares (segundo quem pode ou se atreve a contar ou adivinhar) e não permite a curiosidade ou qualquer lei internacional de lhe espreitar o armazém. A exceção assume-se descarada na recusa de tratados e no impedimento de inspeções. Enfim, faz o que quer, que o Ocidente só controla quem pode. É um facto que o Irão deseja acabar com o atual etnoestado israelita, que classifica como “regime sionista”, e que acusa de ocupar território e remeter a população palestiniana à condição de sub-humanos. Mas é igualmente verdadeiro que, no passado, sob o presidente Khatami, os iranianos mostraram abertura à solução de dois Estados, embora atualmente defendam uma solução única, baseada num referendo supostamente democrático, em que a “população originária” — judia, muçulmana, cristã ou de qualquer outra religião — poderia votar. Não se sabe ao certo o que entendem por “população originária”, mas desconfio que o conceito não será propriamente inclusivo.
A propaganda precisa desesperadamente de um vilão sem nuances, a preto e branco, e o Irão serve na perfeição. Apaga-se, convenientemente, da razão e da memória que do outro lado estão dois países nucleares que há décadas dizem que uma nação não existe e tudo fazem para, esses sim, a varrer do mapa: a Palestina. Quando nos servem mais uma vez a ameaça existencial iraniana — há mais de 30 anos iminente, mas nunca concretizada — convém lembrar que Gaza se desfaz com bombas, fome, miséria e morte, num exercício diário agora com renovada invisibilidade estratégica. Quanto aos justiceiros da “terra da liberdade”, o respeito pelas suas próprias leis deixa de ser importante quando estas atrapalham. Aviões e bombas abastecem nas Lages e voam discretos sobre as nossas cabeças e por cima do direito internacional que eles próprios ajudaram a redigir. A Europa insiste em bater palminhas, não vá o segundo ato trazer uma bomba de tarifas que, não sendo enriquecida a urânio, facilmente nos vai empobrecer o futuro.
Netanyahu prolonga e mastiga guerras. Acena com ogivas que nunca confirma nem desmente, sobrevive entre processos e milhares de cadáveres, é “vítima” autorizada a ser carrasco, sempre ao abrigo da bandeira do “direito de se defender”. O aviso do líder israelita sobre a ameaça bárbara dos persas chega sempre com a urgência de quem espera um ataque já amanhã, embora esse “amanhã” nunca chegue.
E lá do alto, os polícias do mundo, proprietários do maior arsenal planetário e da mais absoluta alienação pelos interesses dos outros. Apresentam-se como campeões do antiterrorismo, como se o terrorismo fosse invenção oriental, quando, em nome do Bem, os americanos financiaram mujahideen, terão dado armas a Bin Laden no Afeganistão, treinaram rebeldes anti-Assad que acabaram nas fileiras da Al-Qaeda na Síria, apoiaram os Contras na Nicarágua, criaram e financiaram milícias terroristas em Bagdade, experimentaram laboratórios de guerrilha nos Balcãs e, mais recentemente, consta que mantêm acordos implícitos e indiretos com a Al-Qaeda no Iémen, na luta contra os hutis. É o terrorismo do bem. Se a narrativa dá jeito, são “rebeldes moderados”; quando já não servem, envia-se o memo para as televisões, diz-se que agora são agentes de terror e prepara-se a próxima invasão.
Não, o Irão não é regime para apresentar à família, e estou muito longe de o querer defender, mas urge uma análise crítica à evidente dualidade ocidental. O país está a milhas de ser um paraíso humanista, registando graves e generalizadas violações de direitos humanos, particularmente em relação às mulheres — embora menos severas quando comparadas às do aliado saudita dos americanos, que nos vai enchendo o depósito sem provocar qualquer comichão de imoralidade. E não, ninguém enriquece urânio a 60% apenas para acender candeeiros. Mas só um louco deixaria de o fazer quando o seu principal adversário regional exibe ogivas nucleares ilegais, garantindo-lhe vantagem suficiente para praticar políticas há décadas que a maioria das organizações internacionais classificam como limpeza étnica, sem grande interferência dos vizinhos mais próximos.
Líbia, Iraque e Ucrânia abriram mão de programas ou armas nucleares e foram invadidos e destruídos. China, Rússia, Paquistão e Coreia do Norte levam o selo de inimigos, mas ninguém arrisca fazer deles alvos diretos. O Irão assinou um acordo nuclear com os EUA em 2015, mas Trump rasgou-o em 2018. Só um país muito imprudente não procuraria escudar-se com uma bomba a partir desse momento, que tem demonstrado exercer uma forte influência dissuasora, até perante as grandes potências mundiais. Podemos apelidar a paz de podre, mas é paz ainda assim.
Depois, a Europa queixa-se da imigração que nos chega daqueles lados, mas a verdade é que a semeia com destruição. Bombardeia, arrasa, converte países em ruínas e espanta-se quando os sobreviventes lhes vêm bater à porta.
Quem olha para uma nação milenar e só vê um ninho de 90 milhões de terroristas é analfabeto em História ou tem na agenda o engano. Não se trata de defender aiatolas, mas de lembrar que já não somos missionários, nem juízes, muito menos carrascos. Um país de 250 anos como os EUA dificilmente ensina civilização a um império com 2500 anos de história.
O direito internacional não pode servir só para quem não tem ogivas ou aliados poderosos. Não nos podemos esquecer do Iraque. Hoje, todos reconhecem o embuste das supostas armas de destruição maciça, mas só depois de centenas de milhares de mortos, possivelmente mais de um milhão segundo algumas estimativas, e de transformar o país em cacos. É dessa miséria, da mais absoluta injustiça e humilhação que brota o terrorismo que deve preocupar a Europa e os Estados Unidos. O Daesh foi parido pela invasão americana, por exemplo. Quando a justiça dos homens é surda, agarram-se em desespero à divina.
Sempre que o Ocidente intervém no Médio Oriente para o moldar à sua imagem, o povo acaba por se agarrar à vontade de Deus. É bom recordar Mohammad Mossadegh, o primeiro-ministro iraniano eleito democraticamente no parlamento em 1951. Ao nacionalizar os principais recursos naturais do país, de que o Irão só beneficiava em 16% — os restantes 84% enchiam os bolsos britânicos — , Mossadegh assinou a sua sentença. Em 1953, num golpe orquestrado pela recém-criada CIA e pelo MI6, foi deposto, o Xá regressou ao poder, e os recursos voltaram a seguir a rota de Londres. Aquela que era uma monarquia constitucional foi transformada numa ditadura que perseguiu, torturou e matou opositores. Assim, ao longo de décadas de injustiça e ressentimento, plantou-se a semente da revolução islâmica de 1979. Eis o legado da pedagogia à força: a história, mais cedo ou mais tarde, apresenta a fatura.
A democracia não se impõe, muito menos ao tiro e à bomba. Não chega em contentores pelo Estreito de Ormuz. Cada povo tem o seu tempo, cultura, história, a maneira própria de sonhar o futuro. O exemplo não nasce seguramente do pesadelo das bombas nem da divisão preconceituosa entre bárbaros e civilizados.
Sem armamento nuclear, que já provou ser o maior dissuasor, o único caminho sensato seria a criação de uma zona livre de armas nucleares no Médio Oriente. O Irão já aceitou essa solução, mas Israel, o único país nuclear da região, recusa esse caminho. O resto é o resto. Mais uma encenação neste teatro de horrores que tanto clama por direitos humanos como esconde atrás da cortina o genocídio que acontece em Gaza. Enquanto isso, todo o Ocidente se prepara para, a qualquer momento, ajudar a plantar mais um mar de cemitérios do Levante à Pérsia. Vamos apontando os monstros que nos convêm, enquanto fintamos o espelho que nos devolveria o quão medonho é o nosso próprio rosto.
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Visao