Como a UE pode fazer dos desafios, oportunidades 1

Vivemos num mundo com fortes mutações geopolíticas e tecnológicas. A UE está hoje sujeita a um conjunto de desafios que, segundo os seus líderes, ameaçam a sua própria existência. Mas estes desafios também representam importantes oportunidades que esta geração política ou aproveita ou desperdiça, colocando-nos numa posição de grande fragilidade económica e política. As medidas de política propostas pelo Relatório Draghi, publicado em setembro de 2024, já estão em parte ultrapassadas pela evolução geopolítica vertiginosa dos últimos meses, sobretudo pelas medidas de políticas tomadas por Trump desde o início de 2025. A guerra comercial e as convulsões dentro da NATO e o agravamento da guerra da Rússia contra a Ucrânia, e do Médio Oriente, bem como as ameaças que estas colocam à UE, sem esquecer as ameaças da China, são as maiores ameaças que a União já enfrentou desde o fim da Guerra Fria, e poderíamos mesmo dizer desde a II Grande Guerra.
Neste primeiro ensaio vamos abordar os desafios lançados pela nova ordem económica internacional no domínio do comércio internacional pelo Trumpismo, que foi abordado nos nossos últimos quatro ensaios. Primeiro, veremos as relações bilaterais com os EUA e depois as relações bilaterais e multilaterais com o Resto do Mundo. Em seguida, abordamos o tema da construção de um Mercado de Capitais Único, que permitiria uma maior autonomia financeira e uma das principais bases para a aceleração do crescimento. Finalmente, abordamos uma importante oportunidade, que se refere a algumas das políticas mais relevantes para aumentar a relevância do Euro como moeda de reserva a nível global. Esta é claramente uma oportunidade que a UE pode aproveitar para aumentar a capacidade de diversificação dos portfolios dos grandes investidores internacionais, permitindo à UE uma maior mobilização de recursos financeiros a nível internacional. E, não mesmo despiciente, aumentar a capacidade de financiamento da sua segurança e crescimento económico.
No segundo ensaio abordaremos a questão da segurança e indústrias de defesa e o tema da política industrial e cadeias de produção.
1. Estabelecer relações comerciais equilibradas entre a UE e os EUAEm 2024 a UE importou 334 mil milhões de Euros dos EUA e exportou 532 mil milhões para os EUA, o que representa um excedente de cerca de 200 mil milhões de Euros. Não admira que Trump, numa visão mercantilista, tenha escolhido a UE como um dos seus principais alvos de ataque. No primeiro onda de tarifas, Trump impôs tarifas de 25% sobre as importações de todos os países de aço, alumínio e carros. Entretanto, as tarifas sobre aço e alumínio subiram para 50%. Em resposta, a UE impôs tarifas sobre um pacote de importações dos EUA equivalente a 21 mil milhões de Euros, que afetam produtos politicamente sensíveis como soja, aves, motociclos, e outros produtos agrícolas.
No início de abril, como parte das chamadas “tarifas recíprocas”, os EUA impuseram uma tarifa geral de 10% sobre todas as importações. Em resposta, a UE instituiu uma tarifa de 25% sobre 99 categorias de importações dos EUA. Setores como os automóveis, farmacêuticos e maquinaria, que estavam fortemente dependentes do mercado americano, já começaram a sentir quebras de exportação.
O nível mais elevado de tarifas impostas sobre a UE, de 25%, foi suspenso por 90 dias. Tem havido negociações entre as partes, mas Trump já manifestou o desagrado sobre a sua evolução. Sugeriu, para reduzir de imediato o excedente da UE, que esta se comprometa a comprar petróleo e gás num montante de 350 mil milhões de USD. Caso as negociações falhem, a UE já tem preparada uma lista de tarifas que afetam 95 mil milhões de Euros das exportações dos EUA, e que incluem carros, aviões e Bourbon. Além destas medidas, outras se têm discutido no domínio das grandes empresas digitais e dos serviços, onde os EUA têm um elevado excedente sobre a UE.
A UE tem procurado retaliar dentro das regras da OMC, num sinal de respeito pelas organizações multilaterais. O impacto sobre o PIB da UE tem sido estimado pelas organizações internacionais em 0,2 a 0,8%.
O recente princípio de acordo comercial entre os EUA e o RU, considerado por Trump como histórico e “Base de Prosperidade Económica”, pode servir de referência para as negociações da UE.[1] Para já, Trump estabeleceu uma tarifa universal de 10% sobre as importações dos EUA. A UE terá uma grande dificuldade em abrir os mercados agrícolas, devido à anacrónica Política Agrícola Comum. O setor automóvel que representa 60% do excedente comercial da UE com os EUA é um dos mais críticos e importantes. O RU só conseguiu reduzir a tarifa dos 25 para 10% sobre o volume atual de exportações. As exportações de aço e alumínio da UE assumem valores reduzidos no contexto global. Áreas particularmente importantes, e para as quais mesmo o RU ainda não consegui fechar, são os serviços e o comércio digital.
Num mundo global, é evidente que existe sempre a possibilidade de aceder a mercados alternativos, embora a substituibilidade seja diferente conforme a dimensão e o tipo de produtos procurados por diferentes mercados. Assim, a UE deve aproveitar as oportunidades criadas pela guerra comercial de Trump, ao levantar barreiras às importações do Resto do Mundo, negociando acordos de redução de barreiras e mesmo de comércio livre com países e regiões onde existe um grande potencial. Em particular, com o Mercosul, México, Canadá, Australásia, Japão e Coreia, como mercados mais maduros. Entre os mercados emergentes, a Índia, Vietname e outros países do Sudeste Asiático são de grande relevância para a UE. E sem esquecer os mercados africanos, onde a China tem feito um grande esforço de penetração. Os serviços de comércio externo, coadjuvados com os nacionais, têm aqui um imenso papel a desempenhar.
3. Criação de um mercado de capitais comunitárioUma das razões do atraso da UE em relação aos EUA, não só em termos de PIB per capita como na taxa de crescimento da produtividade reside na fragmentação dos mercados de capitais da Europa, e na forma como a poupança é canalizada para o investimento. As diferenças são abismais. A capitalização do mercado bolsista dos EUA é de 56 550 mil milhões de USD (Figura 1), enquanto o maior mercado na UE é a França com 3 460 seguido pela Alemanha com 2 183 milhões de USD! No total, a capitalização de mercado da UE é de 13 900 mil milhões, cerca de um quarto da dos EUA.

Fonte: World Bank
E os mercados acionistas europeus criam muito menos valor: entre 2015 e 2024 o mercado americano valorizou 288%, enquanto o europeu cresceu 139%.
A estrutura dos ativos das Famílias (Quadro 1) revela as diferenças das aplicações das poupanças das famílias na UE, em comparação com as dos EUA. Enquanto nos EUA os depósitos bancários (e fundos monetários) apenas representam 14,6% do total dos ativos, na UE estes representam 30,6%. Mas esta diferença resulta em grande parte da contabilização dos fundos de pensões, que na UE assumem a forma de Pay-as-you-Go. Substituindo uma estimativa do seu valor na coluna UE*, ainda persiste uma diferença substancial a favor das aplicações no mercado de capitais nos EUA, e na banca e pensões na UE.

Fonte: FED, Eurostat e estimativas do autor Nota: a coluna UE* refere a estimativa das pensões, incluindo as PAYG, enquanto a coluna UE apenas inclui os fundos pensões privados e de capitalização
Estas diferenças são mais notórias se considerarmos os valores absolutos, pois o património das famílias na UE é de apenas de 30 a 45% do património dos EUA (com a taxa de câmbio de 1:1). O total das aplicações no mercado de capitais pelas famílias atingia 107 biliões de USD nos EUA, contra apenas 25 biliões de Euros na UE!
É a primeira vez que este tipo de análise é feito, e na nossa modesta opinião, merecia um estudo aprofundado. Esta diferença abismal é devida a fatores institucionais, geográficos e regulatórios. O fator institucional mais importante é que os sistemas de pensões na UE são em grande parte públicos, baseados em PAYG, enquanto nos EUA os fundos de pensões são sobretudo privados, o que explica pelo menos 20 biliões na diferença do mercado de capitais. Os geográficos resultam da fragmentação dos mercados a nível nacional, o que explicarão entre 30 e 40 biliões de Euros. E os restantes são sobretudo regulatórios: entre 2019 e 2024, a UE emitiu 13 mil atos regulatórios contra apenas 5,5 mil dos EUA. Haverá ainda outros fatores de natureza comportamental, ou de aversão ao risco, que resultam dos fatores anteriores (são endógenos) e culturais (espírito empresarial).
Negligenciar estes fatores condenará as políticas de desenvolvimento dos mercados de capitais ao insucesso ou a simples aspetos superficiais, sem grande impacto. Mas reformar os fatores institucionais é uma tarefa hercúlea, e que levará porventura décadas.
Devemos observar que o objetivo da política de reforma dos mercados de capitais não deve ser aproximar o sistema europeu do americano, mas sim aumentar a sua eficiência em termos de (i) atingir os níveis de poupança dos agentes económicos conformes com o crescimento ótimo da economia a longo prazo; (ii) maximizar a eficiência dos investimentos de forma a que estes contribuam para atingir aquele crescimento ótimo, e (iii) canalizar as poupanças para os investimentos de forma eficiente, para atingir (i) e (ii).
Nesta ótica, existe uma grande evidência de que os EUA conseguem obter uma maior eficiência marginal do capital dos seus investimentos, o que conduziu a uma taxa de produtividade total da economia cerca de 1.5 a 1.7 pontos percentuais acima da UE nas duas últimas décadas.
Existem três canais fundamentais: (a) a política fiscal e orçamental; (b) o sistema bancário, e (iii) o mercado de capitais. A UE tem uma proporção elevada de intervenção do Estado, sobretudo porque muitos países, incluindo Portugal, não baseiam o sistema de pensões nos três pilares: público, empresarial e familiar, com parte de capitalização, que é um claro incentivo à poupança e a uma melhor distribuição intertemporal do rendimento. A UE tem uma grande predominância do setor bancário, com forte regulação e desincentivo à tomada de risco, o que não permite uma alocação apropriada à inovação e investimento. Existe uma grande insuficiência do capital de risco na UE. O volume de capital de risco nos EUA em 2024 atingiu 368 mil milhões de USD contra 61.5 na UE, quase três vezes mais.
A reforma do mercado de capitais na UE deve começar pela reforma do sistema de pensões, seguindo na esteira dos países nórdicos, desenvolvendo os três pilares e uma componente de capitalização. Desregulação do sistema bancário, com maior consolidação e concorrência (por exemplo do sistema das caixas de poupança na Alemanha), incentivos a uma maior abertura ao público do capital das grandes empresas, integração das bolsas europeias, entre muitas outras. Outras importantes reformas coadjuvantes são o completar a União Bancária e a criação de sistemas de insolvência comuns entre os Estados-Membros.
4. Criação das Euro Bonds como instrumento de reserva internacionalA doutrina expressa pelos economistas de Trump pretende preservar o papel hegemónico do USD, que como sabemos facilita o endividamento externo, como moeda de reserva. Em reação às “tarifas recíprocas” de Trump, e aos receios da política orçamental fazer disparar os níveis da dívida pública americana, houve sinais no mercado de que países asiáticos responderam vendendo ativos em dólares nos mercados de capitais internacionais. Contudo, essas vendas seriam sempre limitadas, pois continuam a não existir moedas que comecem a rivalizar com o USD. As tentativas dos BRICs ainda não produziram qualquer efeito significativo, e do nosso ponto de vista, não têm grande chance porque o substrato de uma moeda é sempre a capacidade de produção de uma economia e a confiança (estabilidade) que oferecem. Ora, estas estão longe de ser alcançadas, apesar da China ter aumentado espetacularmente a sua quota na produção mundial. Num livro recente, Ken Rogoff, Our Dollar, Your Problem, Yale University Press, 2025, aborda de forma magistral a questão da hegemonia do dólar americano e as condições necessárias para que uma moeda possa ameaçar aquela hegemonia. Embora a sua análise em relação ao Euro seja um pouco cética, é uma realidade que o uso do Euro hoje se limita à UE e a alguns pequenos países que estavam ligados a países europeus por laços financeiros e políticos.
E é aqui que a UE tem uma oportunidade única de aumentar significativamente o seu peso entre as moedas de reserva a nível mundial. Mas para isso tem de criar um ativo associado à sua capacidade de produção mundial, que só pode existir sendo um ativo criado e garantido a nível da União (Zona Euro). Quanto ao grau de confiança e estabilidade de valor, a reputação já angariada pelo BCE e pelas regras orçamentais da União, estão asseguradas. Falamos, evidentemente das conhecidas “Euro Bonds”. A sua criação permitiria aos grandes investidores mundiais (bancos centrais, fundos soberanos, fundos de pensões) a sua aquisição para figurarem ao lado das obrigações do Tesouro dos EUA, nas respetivas carteiras.
Já correu muita tinta sobre a criação das Euro Bonds, também conhecidas por European Safe Bonds (ESBies), onde intervieram alguns dos melhores economistas da atual geração. Estas seriam emitidas em nome e garantidas pela União Europeia e denominadas em Euros, podendo abranger vários prazos mais ou menos longos. O problema é que não existe ainda um Tesouro Europeu para as emitir. Ou seja, para tal é necessário que haja uma política orçamental comum. Na sua ausência, estas poderiam ser emitidas pelos Tesouros nacionais, mas respeitando regras comuns, que levem a que a sua garantia de pagamento seja extensiva a todos e cada um dos membros da União Monetária. E aqui reside o cerne da questão: existe confiança suficiente entre os membros para que nenhum faça “free riding” e emita títulos para financiar o seu défice à custa dos outros membros? Pensamos que hoje, passada uma década sobre a crise do Euro, seja possível estabelecer regras de disciplina fiscal que permitam a sua emissão pela Zona Euro. Inclusivamente lembramos que também se referiu a modalidade de a sua emissão só poder ser feita por países membros que tenham uma história de respeito pela estabilidade orçamental inquestionável. É altura de voltar a reavaliar estas alternativas e criar as Euro Bonds.
Lisboa, 22.6.2025
[1] Segundo a Associated Press: (i) Os EUA mantêm a tarifa de 10% sobre quase todas as importações do RU, imposta por Trump a 2 de abril; (ii) Os EUA vão reduzir as suas tarifas sobre a importação de automóveis do RU de 27,5% para 10%, mas apenas até 100 mil automóveis. O RU exportou 92.000 automóveis para os EUA em 2024, o que significa que a indústria automóvel britânica não poderá aumentar as suas exportações sem pagar tarifas mais elevadas; (iii) As exportações de aço do RU entrarão nos EUA isentas de impostos, em vez de enfrentarem a tarifa de 25% que a Casa Branca impôs ao aço importado; (iv) Os dois países concordaram em alargar o acesso ao mercado para alguns produtos agrícolas; (v) Os EUA vão suspender todas as taxas sobre os motores de avião e outras peças aeroespaciais da Rolls Royce britânica. Em troca, uma companhia aérea britânica anunciará em breve a compra de 10 mil milhões de dólares em aviões da Boeing; (vi) O RU vai reduzir a sua tarifa média sobre os produtos americanos para 1,8%, o que representaria um corte de 200 milhões de dólares nas tarifas. Ainda estão em discussão o acesso ao SNS inglês, o imposto sobre os serviços digitais do RU, que atinge gigantes tecnológicos norte-americanos como a Amazon, a Google, da Alphabet, e a Meta. Assim como produtos farmacêuticos, semicondutores, e minerais essenciais.
observador