Palavrões, corações e Gyökeres. O que dizem os votos nulos?

“Não podia deixar passar a oportunidade de justificar o meu voto (embora ninguém vá ler provavelmente). Os nossos ditos representantes ñ podem ter uma luta de egos e em vez de ocuparem o seu tempo a atacarem-se defendam as suas ideias e os seus programas”. A declaração surge escrita à mão, a caneta azul, no fundo de um boletim de voto. Foi lida pelo Observador num dos quase de 59 mil votos considerados nulos em território nacional nas eleições legislativas do passado dia 18 de maio (menos oito mil que em 2024). O desabafo vem acompanhado também por um voto, ainda que em nenhuma das 18 opções dadas aos eleitores. Com a mesma caneta azul, este eleitor, ou eleitora, colocou a cruz numa 19.ª hipótese: o povo.
O Observador consultou uma amostra com mais de mil boletins anulados no círculo eleitoral de Lisboa, onde o boletim era composto por 18 partidos, o que não acontece em todos os círculos eleitorais. Foram selecionados de forma aleatória entre os 2021 envelopes conservados na Unidade Central do Palácio de Justiça de Lisboa após terem terminado os trabalhos da Assembleia de Apuramento Geral. Além do “povo”, nas últimas legislativas os portugueses “votaram” em massa em Viktor Gyökeres, jogador do Sporting; com menor expressão no treinador Rui Borges; mas também em Deus e no Papa Francisco. Até D. Sebastião teve votos.
Na maioria dos casos verificados pelo Observador, o voto nulo é consciente. Entre os mais de mil boletins consultados, algumas centenas foram rasuradas de propósito com uma cruz ou uma traço que ocupa toda a folha A4. Outras opções populares de quem quer propositadamente depositar um voto nulo passam por colocar a cruz não apenas num partido mas em vários, ou mesmo em todos.
Mas também há centenas de votos que acabam por ir para o lixo sem que essa possa não ser a intenção do eleitor. “Não desiludas!”, “força!”, “boa sorte”, “vamos vencer as desigualdades!”. Estes e outros desejos foram manifestados pelos eleitores à frente do nome do partido no qual desenharam a cruz. Também são comuns os desenhos de corações ou caras sorridentes junto ao voto que é, nestes casos, automaticamente anulado. Na amostra consultada pelo Observador no Palácio da Justiça, onde os mais de 11 mil boletins nulos registados no distrito de Lisboa são guardados antes de serem destruídos, os “corações” desenhados à volta dos nomes dos partidos surgem maioritariamente (cerca de uma dezena) em votos depositados no Chega.
Mas há outro fenómeno verificado em algumas dezenas de votos, que acabaram anulados não parecendo ser essa a intenção do eleitor. Entre o nome do partido e o quadrado destinado à cruz, surge a assinatura do votante, e muitas vezes o nome completo. A grande maioria dos eleitores que associaram a assinatura ao boletim votaram, nesta amostra, no Partido Socialista.
Há várias razões para que um voto seja considerado nulo. De acordo com a Comissão Nacional de Eleições (CNE) um voto nulo é aquele em que tenha sido assinalado mais de um quadrado; em que haja dúvidas sobre qual o quadrado assinalado; em que tenha sido assinalado o quadrado correspondente a uma candidatura que tenha sido rejeitada ou desistido das eleições; em que tenha sido feito qualquer corte, desenho ou rasura e em que tenha sido escrita qualquer palavra.
As indicações da CNE são claras: o voto deve ser assinalado com “dois riscos que se cruzem dentro do quadrado que está na mesma linha da candidatura em que pretende votar, a seguir ao símbolo respetivo”. Se a cruz sair fora do quadrado, “e mesmo que a cruz não esteja perfeitamente desenhada”, o voto é considerado válido, diz a CNE, “desde que assinale a vontade do eleitor sem lugar a dúvidas”.
Mas para os eleitores, parece haver dúvidas. Entre os mais de 11 mil votos, ou 0,89%, que foram considerados nulos no círculo eleitoral de Lisboa, há dezenas de situações em que a escolha do partido é feita não com o recurso a uma cruz, mas antes com um sinal de visto, com um círculo desenhado em torno do quadrado do voto ou até pintando o quadrado. E até com a cruz inscrita no símbolo do partido em vez de no quadrado próprio. Em nenhuma destas circunstâncias um voto pode ser considerado válido.
Foi tema nas legislativas de 2024, quando o partido ADN, de Joana Amaral Dias (o cabeça de lista por Lisboa foi Bruno Fialho) multiplicou por dez a votação que tinha registado em 2022, conseguindo até a subvenção partidária atribuída aos partidos com mais de 50 mil votos (teve 100.044). Seria possível que muitos destes votos fossem, na verdade, destinados à coligação Aliança Democrática (AD), que juntava PSD, CDS e PPM?
A coligação que venceu as eleições não teve dúvidas sobre a confusão com as siglas e até apresentou uma queixa à CNE. A consulta feita pelo Observador aos votos de 2025 verificou que os enganos existem mesmo. Nas últimas legislativas, o ADN perdeu votos em relação ao ano anterior (teve menos de 79 mil), mas em dezenas de boletins é possível perceber que os eleitores queriam colocar a cruz na AD, mas a semelhança com o ADN fez com que assinalassem o quadrado errado. Cerca de 50 dos mais de mil votos consultados mostram que os eleitores perceberam o erro, rasuraram o quadrado do ADN e fizeram, depois, a cruz na AD. Em alguns boletins, para que o engano fosse percetível, os eleitores até fizeram questão de deixar uma mensagem para quem contasse os votos: o voto no ADN é “não aplicável”, o “correto” é na AD.
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