Um catastrófico romance de Joël Dicker

Ao oitavo romance, o multipremiado escritor suíço Joël Dicker procurou reinventar a sua escrita, tentando afastar-se do estilo que o tornou um sucesso de vendas, de modo a criar um livro, como o próprio explica no posfácio, “que pudesse ser lido e partilhado por todos os leitores, dos 7 aos 120 anos”.
Uma Catastrófica Visita ao Zoo é então um romance onde Dicker se esforça por construir uma paródia do estilo detetivesco por que se tornou conhecido, para assim contar a pequena tragédia que se abateu sobre Joséphine — a protagonista e narradora da história — e os seus cinco coleguinhas da única turma da Escola dos Cumes Verdes, até essa data administrada pela simpática mademoiselle Jennings. Logo no começo, somos informados de que os alunos desta escola especial (“chamamos escola especial a uma escola onde são colocadas as crianças que não vão para outras escolas”) têm nomes (Yoshi, Otto, Thomas, Artie, Joséphine e Giovanni) com origens muito diferentes, sublinhando-se assim, desde a primeira página, a suposta universalidade da história, que visa corresponder também à universalidade do seu público-alvo.
Ora, antes de arrancar, devo sublinhar uma limitação minha: este foi o primeiro livro de Dicker que li, pelo que talvez não esteja em condições de compreender algumas das suas subtilezas, visto que ao criar uma paródia de histórias policiais é provável que Dicker esteja aqui também a parodiar a sua obra, o que levanta uma pista de leitura porventura interessante, mas que não estou capaz de seguir.
Seja como for, em vários momentos a narrativa deixa-se enredar numa série de confusões que prejudicam a inteligibilidade do livro. Senão vejamos. Logo na segunda frase, somos informados de que até ao momento em que Joséphine, já adulta, decide escrever o livro, “ninguém soube o que verdadeiramente se passou” no dia da catastrófica visita ao jardim zoológico.
Esta ideia vem reforçada no capítulo seguinte, ao sabermos que na noite da tragédia Joséphine não tivera direito a sobremesa, porque os seus pais a puseram de castigo: “podes comer o bolo se nos contares o que se passou hoje no jardim zoológico”. Joséphine acrescenta ainda: “Isto chama-se ‘chantagem’, mas abstive-me de fazer qualquer comentário. Peguei na colher e dividi a fatia de bolo em oito pedacinhos.” Ora, a partir deste ponto, não restam dúvidas ao leitor de que Joséphine se recusou a contar aos pais o que se passara, não tendo, por isso, comido a fatia de bolo de cenoura, o seu preferido. No entanto, a estrutura declamativa do livro acompanha a partir daqui a história que nessa mesma noite Joséphine conta aos pais, na qual descreve pormenorizadamente cada detalhe que conduziria à fatídica visita. Mais peculiar ainda, este relato vai sendo pontuado pelos comentários espantados dos pais de Joséphine, sendo que em vários momentos a protagonista descreverá situações que os seus pais presenciaram e conhecem perfeitamente, sem que estes se mostrem impacientes por estarem a ouvir episódios a que seria de todo impossível não terem prestado atenção. Enquanto isso, Joséphine aproveita descontraidamente “para comer mais uma fatia de bolo”, engolindo ao mesmo tempo qualquer vestígio de coerência.
Também a questão de se tratarem de alunos com necessidades de ensino especiais parece estruturalmente problemática, uma vez que, apesar de nunca sabermos que necessidades serão essas, no início da história é-nos explicado que a mãe de Joséphine lhe dissera um dia que a filha provavelmente nunca iria para uma escola normal, mas que era amada tal qual era. Certíssimo. Contudo, a sugestão de limitações tão profundas não impede, por exemplo, que polícias e perpetradores levem as investigações das crianças muito a sério ou que, no fim de tudo, nos seja dito que Joséphine se tornaria uma escritora célebre, tendo andado em escolas não-especiais e em universidades, sem que ninguém nos informe do que entretanto mudara para tornar isso possível.
Ainda no que respeita à estrutura do livro, também o mistério criminal que envolve a trama parece construído às três pancadas, uma vez que até o leitor menos competente na previsão do desfecho de histórias deste tipo — e.g. eu próprio — consegue passadas poucas páginas perceber exatamente o que se terá passado, fazendo com que os detetives não sejam os responsáveis por desvendar o que afinal acontecera, mas antes os últimos a cruzar, em passo lento e estafado, a reta da meta. Isto poderia ter algum interesse, por assim se desconstruir o modelo de livros do género, mas em nenhum momento intuímos que seja essa, afinal, a intenção do autor.
Por fim, há outro problema considerável. Ao tentar criar um livro para todas as idades, Joël Dicker fica a meio caminho de coisa nenhuma. A ideia era promissora: escrever um romance do ponto de vista de uma criança extraordinariamente inocente e delicada. O problema é que já muitos o tentaram (a começar, por exemplo, por Antoine de Saint-Exupéry) e quase todos, salvo raríssimas e brilhantes exceções (Lewis Carroll, Bill Watterson, Kurt Vonnegut), falharam catastroficamente.
Dicker tenta olhar para o mundo (e para a democracia) com o olhar de uma criança, mas disso resultam apenas piadas com uma estrutura cansativamente repetitiva e ideias pouco originais, como as que encontramos resumidas num posfácio. Veja-se, por exemplo, a sempiterna ideia de que “nos deixámos todos fascinar de tal maneira pelas redes sociais e os seus algoritmos diabólicos, que esquecemos o facto de eles agirem sobre o nosso espírito como as máquinas de casino”, ou de que “as pessoas ficam cada vez mais presas aos ecrãs dos seus telemóveis”, ecrãs esses que “fizeram com que renunciássemos ao gesto de olhar à nossa volta”, o que, claro, contribui para que vivamos “num mundo cada vez mais polarizado e dividido” por causa, lá está, “da nossa incapacidade de levantarmos a cabeça dos telemóveis”. Talvez tudo isto justifique a sapiente afirmação do diretor da escola não-especial, que nos explica que as pessoas não gostam de ideias diferentes “porque isso as enerva. Não se apercebem da sorte que é podermos ser todos tão diferente, em conjunto. Porque é essa a beleza da democracia.” O que leva mademoiselle Jennings a exclamar, extasiada como só ficamos perante as grandes verdades: “É extraordinário o que acaba de dizer”. Não estou certo de que seja.
observador