A ilha que não se rende

Há uma ilha no Oriente onde o século XX ainda fala com voz própria. A 10 de outubro de 1911, a Revolução de Wuchang pôs fim a dois milénios de domínio imperial e deu origem à República da China, o primeiro regime republicano da Ásia. 114 anos depois, essa mesma República continua viva apenas em Taiwan, uma democracia vibrante que resiste, com serenidade e coragem, à pressão de um regime que há décadas tenta apagar a sua existência. O continente chinês transformou a promessa republicana em ditadura; Taiwan, pelo contrário, fez dela a sua razão de ser. Ao celebrar o seu 114.º aniversário, Taiwan não festeja apenas uma data nacional. Festeja uma ideia — a de que a liberdade pode florescer mesmo num solo cercado pela coerção. Num tempo em que o autoritarismo se mascara de pragmatismo e o silêncio se disfarça de diplomacia, Taiwan permanece o lembrete de que há causas que ainda merecem ser defendidas sem hesitação.
Poucos países carregam de forma tão literal o peso da História. A República fundada por Sun Yat-Sen nasceu com o propósito de modernizar a China e libertá-la do feudalismo e da humilhação colonial. Ao longo de um século, essas promessas foram sufocadas pelo autoritarismo do Partido Comunista no continente, mas mantiveram-se vivas nas montanhas e nas cidades de Taiwan. Enquanto Pequim apagou os nomes dos seus fundadores republicanos dos manuais escolares, Taiwan manteve-os nas praças e nos feriados nacionais. O 10 de outubro não é, por isso, apenas uma efeméride: é uma linha de continuidade histórica entre a ambição da liberdade e a sua concretização.
A história recente da ilha é uma lição de persistência e de fé democrática. Durante quase quatro décadas de lei marcial, o país viveu sob um regime autoritário, ameaçado pela invasão e isolado pelo mundo. Ainda assim, encontrou dentro de si a força moral para mudar pacificamente, passo a passo, até se tornar uma das democracias mais sólidas da Ásia. As eleições livres, a alternância de poder e a liberdade de imprensa fazem hoje de Taiwan um modelo de maturidade política. As instituições funcionam com transparência exemplar, a justiça é independente, e a corrupção pública é a exceção e não a regra. Sob a liderança prudente e firme da Presidente Tsai Ing-Wen, Taiwan consolidou o pluralismo, reforçou a igualdade de género, investiu na transição energética e manteve um crescimento económico sustentado, provando que a prosperidade e a liberdade não são forças opostas, mas complementares.
É fácil esquecer que, nos anos 80, poucos acreditavam que esta ilha pudesse transformar-se numa democracia pluralista. A liberalização política não foi imposta de fora, mas conquistada de dentro, por um povo que exigiu mais do seu governo e mais de si próprio. Essa transição pacífica, sem guerra civil nem colapso, é uma raridade histórica que deveria inspirar outros países a acreditar que a democracia é sempre possível, mesmo quando a geografia parece condenar à submissão.
A força de Taiwan, porém, não reside apenas nas suas instituições. Vem da sua sociedade civil, do seu sentido comunitário e da confiança mútua que une governo e cidadãos. É uma democracia madura porque foi conquistada à custa de sacrifício e construída sobre a memória de quem não se conformou com a ausência de liberdade. Num continente onde o poder frequentemente se perpetua pela repressão e pelo medo, Taiwan oferece uma alternativa possível: uma Ásia onde o Estado serve o indivíduo e não o contrário.
É por isso que Taiwan se tornou, involuntariamente, um farol moral. Num tempo em que tantas democracias vacilam perante o populismo, o cinismo e a desinformação, o exemplo taiwanês prova que é possível defender a liberdade sem cair no extremismo, e proteger a identidade nacional sem fechar fronteiras. A sua democracia não é perfeita, nenhuma o é, mas é adulta, consciente e resiliente.
Mas Taiwan é mais do que um exemplo político — é uma peça essencial do mundo moderno. O planeta inteiro, consciente ou não, depende dela todos os dias. É em Taiwan que se fabrica mais de 60% dos semicondutores do mundo e mais de 90% dos microchips avançados usados em aviões, automóveis, computadores e equipamentos médicos. O simples ato de enviar uma mensagem num telemóvel, de conduzir um carro elétrico ou de aceder a um hospital moderno depende, de forma direta ou indireta, da estabilidade e da liberdade daquela ilha. A Taiwan que Pequim tenta silenciar é a mesma que alimenta o coração tecnológico das nossas economias. Defender Taiwan é, portanto, proteger a espinha dorsal da economia global e o exemplo moral da liberdade asiática.
A empresa TSMC (Taiwan Semiconductor Manufacturing Company), símbolo dessa excelência, é hoje uma infraestrutura crítica do planeta. A sua destruição ou captura provocaria uma recessão mundial. É essa interdependência que torna a causa de Taiwan tão global: uma invasão não seria apenas um ataque a uma democracia, seria um colapso do sistema económico sobre o qual assentam as sociedades modernas.
É também proteger um símbolo. Pequim nunca escondeu que vê Taiwan como uma província rebelde, mas o verdadeiro “crime” da ilha é ser livre. Por isso é alvo de intimidação constante — manobras militares no estreito, incursões aéreas, ciberataques, isolamento diplomático e tentativas de manipulação internacional. O objetivo é claro: desgastar psicologicamente um povo cuja existência desafia a narrativa de inevitabilidade autoritária do regime chinês. E, perante isto, o mundo livre tem hesitado. Muitos governos preferem o conforto do silêncio ao incómodo da coerência. O comércio, tantas vezes, fala mais alto do que a consciência. Ainda assim, alguns países têm demonstrado coragem. A Lituânia, a República Checa, a Eslováquia, a Dinamarca, a França, a Alemanha, o Reino Unido e tantos outros (60 países e ainda uma delegação da União Europeia) mantêm representações em Taipé, reconhecendo na prática o valor político e humano de Taiwan. Não o fazem por provocação, mas por convicção. Sabem que a defesa de Taiwan não é apenas uma questão regional: é uma prova da integridade moral do mundo democrático.
A Lituânia decidiu permitir a abertura de um “Taiwan Representative Office”. A República Checa, cujo Presidente Pavel declarou que “Taiwan é um exemplo de coragem e resiliência”, mostrou que a solidariedade europeia pode ser moral e não apenas financeira. Estas decisões provam que a diplomacia, quando guiada por princípios, pode alterar o equilíbrio de poder sem disparar um tiro.
Portugal e a Europa enfrentam hoje esse mesmo teste. O nosso país, com séculos de história no Oriente, foi pioneiro nas relações entre civilizações. Fomos o primeiro povo europeu a chegar a Taiwan (dando-lhe o nome de “Formosa”) e o primeiro a estabelecer pontes com o Japão. Temos, portanto, um lugar natural numa diplomacia que valoriza o diálogo e a moderação. Mas também temos o dever de agir quando a moderação se transforma em omissão. Portugal e a União Europeia têm agora a oportunidade de corrigir uma injustiça histórica: a exclusão de Taiwan das instituições internacionais e o tratamento desigual que lhe é imposto. O apoio a Taiwan não é hostilidade à China; é um ato de respeito pelos princípios universais que sustentam o direito internacional. É lembrar que o comércio livre só é verdadeiramente livre entre nações livres. É compreender que, quando uma democracia é ameaçada, todas o são — mesmo as que preferem não o admitir.
A União Europeia começa a compreender isso. A Estratégia Europeia para o Indo-Pacífico identifica Taiwan como parceiro-chave em tecnologia e inovação. O Parlamento Europeu aprovou várias resoluções que apelam ao reforço do diálogo político e económico. O que falta é a coragem de transformar as palavras em ação. Portugal, com a sua tradição de diplomacia prudente mas valorosa, pode ser uma voz de equilíbrio, capaz de unir a Europa entre o realismo e a ética.
É nesta perspetiva que a Iniciativa Liberal apresentou no Parlamento duas iniciativas complementares para reforçar as relações entre Portugal e Taiwan. A primeira propõe que o Governo inicie o processo de abertura de uma representação portuguesa em Taipé, sob tutela da AICEP ou do Instituto Camões. Trata-se de um passo natural e coerente com a política europeia no Indo-Pacífico, que já levou países como a Alemanha, França, Reino Unido, Espanha, Países Baixos, Itália, Irlanda, Dinamarca, Suécia, Finlândia, Polónia, Áustria, Suíça, Chéquia e Lituânia a manter estruturas equivalentes em Taiwan. Estas representações funcionam com plena normalidade, promovendo os interesses comerciais, científicos e culturais de cada país, sem pôr em causa a política tradicional de “Uma Só China”. Para Portugal, seria a oportunidade de afirmar a sua presença num dos centros mais dinâmicos do mundo e de apoiar as empresas e cidadãos portugueses que ali vivem, estudam ou investem.
A segunda iniciativa visa corrigir as anomalias existentes no tratamento administrativo de Taiwan por parte do Estado português. Hoje, questões básicas como o registo de nascimentos, casamentos ou vistos continuam a ser tratadas em Macau, um território sob jurisdição da República Popular da China, o que cria constrangimentos graves de segurança e acessibilidade. Para um cidadão taiwanês, ser obrigado a deslocar-se a Macau para tratar de um assunto com Portugal significa, na prática, submeter-se à vigilância de um regime que nega a sua identidade nacional. Por isso, a Iniciativa Liberal recomenda que esses assuntos passem a ser tratados pela Embaixada de Portugal em Tóquio, até que exista uma representação portuguesa em Taipé. Essa medida simples resolveria um problema real, protegeria direitos fundamentais e daria a Portugal uma postura mais digna e coerente com os valores democráticos que afirma defender.
Além disso, é necessário reformar o tratamento institucional dado às representações taiwanesas em território português, garantindo que os seus processos passem a ser geridos pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros e não por serviços administrativos de imigração (AIMA). Tal mudança colocaria Portugal em linha com as boas práticas de vários países europeus e reconheceria o papel legítimo que Taiwan desempenha na cooperação económica, cultural e científica.
Estas propostas não rompem com a política europeia. Pelo contrário, modernizam-na. Portugal não precisa confrontar Pequim para respeitar Taipé; precisa apenas de ser coerente com os valores que proclama. O governo português tem, hoje, uma oportunidade rara de fazer o que é certo sem precisar de o fazer contra ninguém. É a oportunidade de dar à diplomacia portuguesa um papel mais digno, mais autónomo e mais fiel à sua tradição humanista.
Uma tradição que, desde o século XVI, combinou curiosidade com prudência. Foi esse espírito que levou Fernão Mendes Pinto e Tomé Pires a cruzar o Oriente, e é esse mesmo espírito que Portugal deve recuperar no século XXI: o da presença inteligente, do diálogo paciente e da defesa firme dos princípios.
Recentemente, tive a oportunidade de conhecer de perto o trabalho, a serenidade e a resiliência do povo taiwanês. A cada reunião, a cada conversa, a cada gesto de cortesia, percebia-se algo que vai muito além da política: uma consciência tranquila de quem sabe viver sob ameaça sem deixar que o medo dite o destino. Taiwan prepara-se, mas não entra em pânico; treina, mas não vive em guerra; constrói abrigos, mas também constrói pontes. Essa normalidade resistente é talvez o seu maior feito — uma lição silenciosa de que a coragem não é a ausência de medo, é a recusa em permitir que ele determine as nossas escolhas. Em cada escola, em cada fábrica, em cada gabinete de governo, sente-se a convicção de que a liberdade não é garantida, mas conquistada e renovada todos os dias.
Há algo profundamente inspirador nessa serenidade. O mundo está habituado a associar resistência à fúria ou à revolta; em Taiwan, ela manifesta-se em compostura e civismo. É uma forma madura de coragem — a de quem compreende que a defesa da liberdade se faz tanto com armas como com aulas, com inovação, com solidariedade, com memória.
O mundo democrático, ao olhar para Taiwan, devia reconhecer-se nesse espelho. É ali que se joga uma das batalhas morais do nosso tempo, mesmo antes de qualquer tiro ser disparado. A ilha que Pequim ameaça conquistar é a mesma que muitos, em silêncio, esperam que continue de pé para que o cinismo não vença. A verdade é que uma invasão de Taiwan não destruiria apenas uma democracia; abateria um pilar invisível que sustenta a confiança entre as nações livres. Seria o sinal de que o autoritarismo pode impor-se pela força e de que o direito internacional é apenas retórica. É por isso que a defesa de Taiwan não é um interesse asiático — é um dever universal.
E esse dever não se mede em tanques nem em tratados, mas em clareza moral. O século XX começou com o mundo a duvidar da liberdade e acabou com ela vitoriosa; o século XXI começou com essa mesma liberdade a ser posta à prova. Taiwan é o próximo campo dessa prova, e a par da Ucrânia um dos mais importantes.
A Europa não pode continuar a ver o Indo-Pacífico como uma abstração distante. A segurança europeia começa hoje no Mar da China Meridional, tal como a liberdade europeia depende de quem a defende fora das suas fronteiras. Se a democracia cair em Taipé, o impacto sentir-se-á em Riga, em Lisboa ou em Varsóvia. A geografia já não protege ninguém. O que protege são as alianças, a coerência e a coragem moral de agir antes que seja tarde. A União Europeia tem dado sinais de mudança, e Portugal pode, e deve, estar entre os países que compreendem o momento histórico e escolhem o lado certo da história — não por cálculo, mas por convicção.
Num mundo em que as fronteiras entre segurança económica, tecnológica e militar se esbatem, defender Taiwan é também defender a autonomia estratégica europeia. Cada chip fabricado em Taipé é uma peça de estabilidade global; cada gesto de solidariedade europeia é um investimento na própria credibilidade do continente.
O caso de Taiwan não é um episódio isolado, é parte de um mesmo confronto entre modelos de civilização. De um lado, os regimes que subordinam o indivíduo ao Estado; do outro, as sociedades que acreditam que o Estado existe para servir o indivíduo. E entre esses dois mundos, Taiwan ergue-se como um lembrete incómodo, mas necessário: o de que a liberdade pode nascer até mesmo nas margens do medo. É por isso que apoiar Taiwan é mais do que uma questão de geopolítica. É um ato de solidariedade entre democracias que se reconhecem mutuamente no valor da dignidade humana.
Portugal, com a sua tradição universalista e com uma diplomacia que sempre procurou construir pontes, pode ser um mediador respeitado e um defensor consequente da liberdade. Não há contradição entre a prudência diplomática e a clareza moral — há apenas a escolha de um caminho. O caminho da coerência, que diz o mesmo em privado e em público. O caminho que honra a história de um país pequeno, mas livre, que outrora ousou navegar até ao fim do mundo e hoje pode ajudar outro povo a permanecer livre na sua própria terra. A diplomacia portuguesa, fiel à sua melhor tradição, deve ser capaz de falar com todos, mas de se calar diante de ninguém.
Taiwan não pede que lutem por ela — pede apenas que não lhe virem as costas. É um pedido simples e justo, que exige mais carácter do que poder, mais lucidez do que armas. O povo taiwanês sabe que está só na primeira linha, mas também sabe que a sua resistência inspira milhões. E é essa inspiração que mantém viva a esperança de que o século XXI ainda possa ser o século da liberdade, e não o do medo.
Defender Taiwan é mais do que proteger uma ilha. É recordar ao mundo que a liberdade, uma vez conquistada, nunca é definitiva. Que a coragem de um pequeno povo pode iluminar a consciência de todos os outros. E que, se há algo que define verdadeiramente uma democracia, não é a força das suas muralhas, mas a firmeza dos seus princípios quando o mundo à volta começa a vacilar.
Na Europa e na Ásia, as linhas de frente da liberdade têm nomes diferentes, mas a mesma essência. Taiwan é, e continuará a ser, o espelho moral do nosso tempo, e o teste decisivo da nossa vontade de permanecer livres.
observador