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Sancta Sancte tractanda!

Sancta Sancte tractanda!

Se a crónica “Não se ajoelhem na missa, ajoelhem-se para lavar os pés aos outros”, de Henrique Raposo, recentemente publicada no Expresso, foi particularmente infeliz em relação às ditas Missas tridentinas e ao uso do latim, como aqui referi na semana passada, depois de Manuel Fúria, José Maria Bleck e Pedro Saraiva Ferreira brilhantemente o terem feito. Ficou por referir o que nessa crónica se disse sobre a comunhão de joelhos e directamente na boca.

Os antigos diziam: “santa sancte tractanda”, ou seja, as coisas santas devem ser tratadas santamente. Ora foi precisamente isto que o cronista não fez, decerto não por mal, mas talvez por ignorância, ou ligeireza: “Vejo demasiados jovens a comungar de joelhos, de mãos atrás das costas e de boca virada para cima como se fossem passarinhos de bico aberto à procura da comida regurgitada pela mamã. Lamento, mas a hóstia não é papa. Lamento, mas isso é uma pose, um teatro beato sem qualquer relação com a fé.” O modo como se refere à Eucaristia – “comida regurgitada”, “papa” – não é apenas de muito mau gosto, mas ofensivo, pois raia a blasfémia e o sacrilégio.

É curioso que o cronista se insurja contra a atitude dos fiéis que vão comungar, mas não o incomode que, por exemplo, muitos sejam os que comungam e poucos os que se confessam, o que leva a supor que nem todos os que recebem a Eucaristia o fazem nas condições prescritas pela Igreja, ou seja, sem consciência de nenhum pecado grave não absolvido em sede de confissão sacramental. Também abundam, desgraçadamente, os fiéis que, na celebração eucarística, não trajam de forma condigna, o que deveria indignar os cristãos mais devotos, pois Jesus, numa parábola de claro sentido eucarístico, expulsou o convidado que não estava vestido de forma conveniente (Mt 22, 1-14). Também é chamativa a alegada desconcentração dos que se aproximam da comunhão, ou dela regressam, mas também não parece que estas manifestações externas de aparente impiedade perturbem o cronista que, pelo contrário, está muito preocupado com o alegado excesso de devoção eucarística de alguns jovens.

Na crítica do cronista não há apenas uma manifesta falta de caridade, mas também algum autoritarismo e presunção. Em tempos que já lá vão, e que o cronista não conheceu porque é, literalmente e graças a Deus, um cristão novo, a comunhão era administrada sobre a grade do altar, em que ajoelhavam os fiéis que iam receber a Eucaristia. Já de joelhos, era com emoção que esperavam a chegada de Nosso Senhor: aqueles breves momentos eram vividos com intensa devoção, na alegre expectativa de receber Jesus. Há precisamente cinquenta anos, em 1975, a Santa Sé autorizou a Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) a introduzir no nosso país a comunhão na mão, desde que a mesma não implicasse detrimento na fé da presença real de Jesus Cristo na hóstia consagrada e fosse precedida de uma oportuna catequese.

Todos os anos, a CEP publica o Diretório Litúrgico, em que se recordam essas normas da Santa Sé, que continuam em vigor. Nelas é sublinhada, com especial ênfase, a total liberdade dos fiéis para comungarem directamente na boca, ou na mão, não podendo o ministro impor nenhuma dessas formas, nem sequer para garantir uma maior uniformidade na celebração. Portanto, criticar os fiéis que piedosamente recebem a sagrada comunhão na boca e de joelhos é, para além de uma evidente falta de caridade, um abuso contra a sua liberdade. Por outro lado, se nenhum diácono, nem nenhum padre, ou bispo pode, em circunstâncias normais, contradizer as regras estabelecidas pela Santa Sé, com certeza que não é o cronista, com todo o respeito que me merece e que é muito, que pode decidir como é que se deve, ou não comungar …

Há já uns anos, a alguém que também discordava dos que se ajoelham para receber a sagrada comunhão, pedi que deixasse cair ao chão a carteira e que depois a apanhasse, o que ele fez sem dificuldade, genuflectindo para o efeito. Depois disse-lhe: “Ajoelhas-te para retirares do chão o teu dinheiro, mas já não o fazes diante de Deus feito homem, que morreu na Cruz para te salvar!” Envergonhado pela evidente hipocrisia da sua objecção, retirou-se convencido e agradecido.

Diante do Santíssimo Sacramento, só há uma atitude razoável: de joelhos! Por isso, depois do celebrante proferir as palavras da consagração, o Missal Romano prescreve a atitude que deve tomar: “genuflectindo, adora”. É, de certo modo, um pleonasmo, pois a genuflexão é já um gesto de adoração. Não é, portanto, uma questão de teatro, ou de pose, mas de fé e de caridade para com Deus e para com o próximo, porque dificilmente amará o próximo quem não adora a Deus.

Na excelente Nota Pastoral Liturgia Viva da Igreja, de 5 de Maio deste ano, a CEP recorda que “A presença de Cristo na Liturgia realiza-se através de sinais sensíveis”, e solenemente confirma “a possibilidade de os fiéis comungarem na boca ou na mão, como preferirem, depois de devidamente esclarecidos, sem imposições ou constrangimentos”. Também se esclarece que “não deverá ser recusada a comunhão aos fiéis que a desejem receber de joelhos. O comungante recebe o Pão eucarístico na boca ou na mão, como preferir (cf. IGMR 160-161).”

Também na relação entre a devoção eucarística e o amor ao próximo, o cronista falhou absolutamente na pontaria. Com efeito, são duas realidades que estão tão implicadas que, logo que Maria recebeu Jesus, no seu seio imaculado e virginal, foi, apressadamente, servir a sua prima, Isabel (Lc 1, 39-56). Não é por acaso que são religiosas, como as Irmãzinhas dos pobres e as Missionárias da caridade de Santa Teresa de Calcutá, que se dedicam aos mais necessitados; que são leigos católicos os Servitas e os voluntários da Ordem de Malta, cuja missão é servir os peregrinos de Fátima, sobretudo os doentes, também lavando-lhes os pés; e que a Missão País é uma iniciativa de solidariedade social promovida todos os anos por fiéis universitários. Em declaração ex cathedra, o cronista afirmou que “a geração que comunga de joelhos naquela pose ridícula [sic] é a mesma que denota uma certa alergia ao voluntariado.” É a afirmação contrária que é verdade: quem nem sequer se ajoelha para comungar, muito menos o fará para lavar os pés do próximo.

Mas, não é verdade que há muitos agnósticos e ateus preocupados com os pobres?! Decerto, mas não conheço nenhuma instituição em que incrédulos se entreguem ao serviço do próximo… Porque será?! Há já alguns anos, para acolher a enorme multidão de óptimas pessoas sem fé que têm preocupações sociais, propus-me fundar a congregação das Irmãzinhas Ateias da Caridade … Porém, até hoje, ainda não apareceu nenhuma candidata! Participar numa manifestação solidária, ou subscrever um abaixo-assinado, qualquer um o faz, mas só quem tem muito amor a Deus é capaz de entregar a vida inteira ao serviço dos mais necessitados.

Quando, há já uns anos, uma estrela de Hollywood visitou uma leprosaria em África, ficou impressionada com a dedicação de uma religiosa daquela instituição e comentou, com total sinceridade:

– Eu não faria isso nem por um milhão de dólares!

Ao que a dita irmã, com um sorriso, prontamente respondeu:

– Eu também não!

observador

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