Arrependimentos e lágrimas furtivas

“Homem de três letras” – era a perífrase que os romanos usavam para dizer ‘ladrão’. Em latim, ladrão diz-se fur. Os antigos romanos, tendo vivido nas profundezas das florestas lutando contra javalis; tendo recebido protecção de uma loba; sentindo que dominavam os seus destinos as silenciosas aves no alto do céu; sendo uma nação extremamente supersticiosa, não ousavam pronunciar esse nome no instante em que desejavam proteger-se das ações a que se referiam. Apenas os antigos Padres o pronunciavam, de forma proverbial, ritualmente, na época da monarquia, isto é, no tempo em que as sete colinas estavam cobertas de florestas assombradas por lobos, javalis e aves de rapina que sobre elas voavam: “O pensamento, a morte, a felicidade, o amor, o desejo, o sonho, o êxtase habitam connosco. Apenas o arrependimento surge no decurso do tempo. Como um ladrão à noite.” Sicut fur in nocte.
À hora mais vermelha do crepúsculo, Caius Vetulius, legionário da III Augusta que corria toda a África capturando animais para a arena do circo romano, suspirava sob um guarda-sol verde e refrescava a cabeça com a água que gotejava de um velho odre. Durante anos, fora o responsável pelo envio de leões da Mesopotâmia e da Líbia, hipopótamos de um qualquer porto egípcio, tigres da Hircânia, leopardos, elefantes da Índia e javalis da Germânia, que, juntamente com os ursos da Dalmácia, tinham viajado muitas milhas náuticas até chegarem a Óstia, a partir de onde, enjaulados, marchariam até Roma para morrer, cedo ou tarde, nas venationes ou caçadas cruéis.
Era um homem ainda jovem, coberto de cicatrizes nos braços e nas pernas, propenso a fadigas e angústias. Se tivesse sorte e os seus protectores concordassem em conceder-lhe um cargo menor nalguma administração, esperava mudar de vida em Roma, onde os seus poucos mas bons amigos suavizariam as suas tristezas com vinho e prazeres simples. Era a sua última viagem.
Entre os seus amigos contava-se Rufus, o médico e bibliotecário cristão, que vivia numa rua estreita e escura, nas imediações do Coliseu. Ansiava pelas suas palavras e pelo seu consolo como um homem sedento anseia pelo límpido manancial donde provém. Pois se até as constelações regressam na abóboda aos seus quadrantes, e os salmões aos seus rios, não há-de um homem regressar àquela manhã alta que o viu nascer?
Muito em breve, com a primeira estrela, estaria aparelhado o navio, e os animais que haviam percorrido a avenida que os conduzia ao suplício em dias de marcha forçada e escasso alimento zarpariam de Cartago. Este cargo de supervisor de animais, depois de tê-lo preferido às guerras e batalhas que alargavam as fronteiras do império, cansava-o agora. Nunca eram suficientes os animais que iam morrer ou matar, esquartejar e devorar as suas vítimas em desespero. Nunca eram em número suficiente os veados de altos chifres, nem lobos nem hienas para abastecer os anfiteatros espalhados pelas colónias. O povo exigia cada vez mais espectáculo. Os verões tornavam-se pestilentos por entre o eflúvio dos cadáveres e dos gritos dos prisioneiros, dos invernos tristes e das primaveras desagradáveis, pois para Caius Vetulius as flores silvestres não faziam mais do que lembrar-lhe a sua família morta num incêndio em Roma.
O supervisor voltou-se, semicerrou os olhos e observou a avenida deserta, em cujas margens só crescia mato e se acumulavam excrementos de animais, que ele removera para que os animais que vinham a seguir não sentissem o pânico daquele maldito caminho pelo qual jamais regressariam.
Já em mar alto, Caius Vetulius sentiu-se enjoado e vomitou. Se no princípio parecia perceber a sede dos imperadores por sangue, com o passar dos anos, consciente da sua inutilidade, oprimia-lhe o peito a estúpida vaidade que dominava aquele desejo de fazer sofrer homens e animais. Os únicos que pareciam compreender esta loucura, este crime, este sacrifício sem sentido, esta carnificina delirante, esta celebração em que o mármore branco se tornava vermelho, eram os cristãos. Entre eles, Rufus. Depressa estaria em sua casa a ler papiros coptas e a estudar a vida e a obra dos apóstolos. Naqueles dias de desprezo e ignorância, não havia melhor refúgio do que entre aqueles que acreditavam na alma. Em Roma, o destino reservava a Caius Vetulius um tremor inesperado e desagradável: um ligeiro terramoto que paralisou os animais nas suas jaulas e fez com que os nobres e os seus convidados abandonassem o coliseu. Roma acolheu então os seus passos cambaleantes e a sua crescente tristeza: foi a uma taberna e bebeu vinho barato. Para comer, apenas língua de bisonte em salmoura e carne de veado em conserva. Voltou para a rua, não fez caso dos apelos das prostitutas e teve a impressão de que as tochas o acusavam de um crime que não cometera. Vomitou de novo e soluçou antes de se dirigir a casa de Rufus.
Foi então que, como uma poderosa pancada nas costas, o atingiu uma onda de dor feita do estertor de um rinoceronte, do gemido de um urso, do uivo de um lobo, do mugido de um touro, do grito de um pássaro com fogo nas asas, da tristeza dos elefantes, do bufo dos onagros e dos suspiros sibilantes de uma garça. E aquela onda de dor vinha do circo, e a espuma que nela crepitava lamentos e queixas era a voz múltipla dos escravos mortos pela espada ou pelo punho de ferro, e o revolto mar do sofrimento que quase o submergia fazia-o sentir-se um náufrago que se agarra a um remo delgado para se salvar do caótico rigor de uma tormenta em pleno coração das águas. Caminhou durante horas aos tropeções, encostado a muros descascados, escutando suspiros dos amantes furtivos e pisando, nas charcas das chuvas da véspera, as lágrimas alheias que também podiam ser as suas. Caius Vetulius vivia, num remoinho de emoções opostas, uma fenda de sentimentos por onde entrava, aos borbotões, a culpa.
Abraçou Rufo, que lia à luz de um candeeiro. Voltou a identificar os livros da sua biblioteca, escassos, mas carregados do consolo que procurava. As tabuinhas de buxo pareciam-lhe peças de um jogo do perdão, pois era evidente que nos dias seguintes teria de alijar o fardo da sua angústia. Perdão pelos erros passados e por ter chegado tão tarde ao arrependimento.
Ao princípio, os amigos permaneceram em silêncio, adivinhando na expressão do outro onde cada um se encontrava, em que encruzilhada ou beco. Depois, ao amanhecer, o médico pegou numa tábua contendo uma versão latina de alguns salmos e leu em voz baixa, mas clara, palavras que a Caius Vetulius soaram a fruta fresca e deliciosa.
Fur tem três letras. Três letras tem Rex. Jesus respondeu ao governador romano do reino da Judeia: Rex sum ego. Em latim, são três vezes três letras. E é tudo. Mais tarde, respondeu a Pilatos: Regnum meum non est de hoc mundo. O meu reino não é deste mundo. O meu reino não está no espaço, não está na casa onde o ladrão entra, não está no meu corpo onde me alimento e em cuja superfície desejo. Não está sequer na língua que uso: nem no aramaico que usava, e que se perdeu, nem no grego que me puseram a falar nos livros que a meu respeito ficaram, nem no latim que veio comunicar o rito às diferentes comunidades que continuam a celebrar a minha memória. O meu reino, que não está na minha alma, talvez esteja no tempo.
“Matar é fácil”, disse o médico cristão, erguendo os olhos, “ressuscitar, não. Matar pode saciar por um momento a nossa sede de omnipotência, mas ressuscitar, criar e dar vida traz a riqueza até às portas do nosso ser. Como um ladrão à noite.” Sicut fur in nocte.
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