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O direito a esquecer

O direito a esquecer

Há feridas que não se veem, mas que consomem. Há batalhas silenciosas que se travam nos tribunais, nas salas de espera dos advogados, nas madrugadas insone de quem perdeu o essencial. A mais cruel de todas é aquela em que um pai, não por opção, mas por sentença, vê amputado o direito de exercer a paternidade. Não falo de exceções, mas de um padrão corrosivo que atravessa Portugal, a Europa e o mundo, em que a lei, os tribunais e o próprio Estado se tornam cúmplices de um roubo: o roubo de um filho.

Quando uma relação termina, quando o amor já não é ponte, mas ruína, deveria caber à justiça assegurar que o mais inocente — o filho — não se transforma em arma de retaliação. Mas o que ocorre, demasiadas vezes, é o contrário. A raiva, o ressentimento e o sentimento de abandono transformam crianças em instrumentos de vingança. E os tribunais, incapazes de penetrar na verdade íntima das famílias, acabam por legitimar esta perversão.

Portugal, tantas vezes acusado de machismo estrutural, converte-se, na prática jurídica, numa caricatura de feminismo legalista. A balança da justiça, que deveria pesar direitos e deveres com imparcialidade, inclina-se quase sempre para o lado materno — não porque essa seja a verdade, mas porque essa se tornou a norma. Um preconceito disfarçado de prudência. Uma covardia travestida de proteção.

O pai — e sublinho, o pai que não abandonou o filho, que não desistiu da relação parental, que quer continuar a ser presença, referência e raiz — vê-se reduzido a visitante ocasional, a carteiro de pensões de alimentos, a cidadão com obrigações plenas e direitos mutilados. A justiça, que tão firmemente impõe o dever de pagar, é a mesma que tão fragilmente protege o direito de educar, de cuidar, de amar.

Falo na primeira pessoa porque não me é possível fingir neutralidade. Sou, como tantos outros, um desses homens empurrados para as trincheiras de um combate desigual. Dez anos de processos, recursos, audiências, de esperanças adiadas e deceções repetidas. Dez anos em que a lei se mostrou incompetente para me garantir o direito mais elementar: ser pai do meu filho.

E não, não é apenas o meu caso. Converso, leio, escuto, e sei que milhares de pais atravessam o mesmo inferno. A justiça portuguesa — e europeia — falha sistematicamente em proteger o princípio de igualdade parental. Há uma cegueira institucionalizada que perpetua a ideia de que a mãe, por ser mãe, tem um vínculo mais sagrado, mais legítimo, mais autêntico. Uma ideia tão velha quanto injusta, tão confortável quanto violenta.

O resultado é devastador: homens destroçados, filhos manipulados, famílias destruídas em nome de uma suposta proteção que não protege ninguém. O que se instala é uma guerra fria de ressentimentos, onde o filho é refém da raiva de um dos progenitores e da impotência do outro.

Diante desta realidade, resta-nos, por vezes, recorrer ao último recurso, ao mais amargo de todos: o direito a esquecer. O direito de desistir, de fechar as chagas, de abandonar a luta que nos consome a alma. O direito de tentar viver sem aquele pedaço de nós que nos foi arrancado não pela morte, mas pela justiça. É um direito desumano, sim. Mas quando o Estado, os tribunais e a própria sociedade falham em garantir os direitos humanos mais básicos, o esquecimento aparece como a única tábua de salvação.

Esquecer um filho não é humano. Mas continuar a viver na tortura da esperança frustrada, no castigo eterno imposto por uma justiça prepotente e impotente, é desumano. Por isso, muitos pais, no silêncio da sua dor, escolhem a única forma de libertação que lhes resta: deixar ir. Deixar que o coração se encerre no luto de um vivo. Deixar que a memória se apague, para que a vida continue.

Não escrevo estas palavras para pedir piedade. Escrevo-as para exigir mudança. A justiça não pode continuar a ser cúmplice da vingança, não pode perpetuar a desigualdade parental, não pode legitimar que os filhos sejam usados como armas de arremesso. A lei deve ser espelho de equidade, não de preconceito. O Estado deve garantir direitos, não apenas impor deveres.

Enquanto isso não acontecer, continuará a crescer o número de pais obrigados a escolher entre a loucura e o esquecimento. Continuará a expandir-se a legião de homens que, no silêncio, carregam a dor de estar vivos para todos, menos para aqueles a quem mais deveriam pertencer: os seus filhos.

E nesse silêncio, nesse vazio irreparável, a sociedade perde algo essencial: a capacidade de reconhecer que a paternidade é tão sagrada quanto a maternidade. E que negar esse direito é negar a própria humanidade.

observador

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