Taxação BBB: acuado por fracassos, governo abandona “união” e retoma “nós contra eles”

Em confronto com o Congresso, sob pressão para fechar as contas e com a popularidade em queda livre, o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) decidiu apostar numa virada de chave na comunicação. Sai o mote institucional “União e Reconstrução”; entra em cena a bandeira da “Justiça Tributária”, com um novo slogan embalado em apelo de reality show: “taxação BBB” — bilionários, bancos e bets.
Diante da dificuldade de emplacar uma marca para o terceiro mandato de Lula, o secretário de Comunicação, Sidônio Palmeira, reedita o velho roteiro do “nós contra eles” e tenta posicionar o mandatário novamente como defensor do povo contra os “donos da cobertura” para a disputa presidencial de 2026.
A Secretaria de Comunicação diz que a adoção de um novo slogan ainda está em transição, mas a campanha publictária já está nas redes. Serão cinco peças que visam ajudar Lula a pressionar o Congresso para aprovação das medidas de compensação do decreto do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) sustado por deputados e senadores, em uma derrota histórica para o Executivo. Estima-se que, com a derrubada do IOF, o governo deixe de arrecadar até R$ 15 bilhões em 2025.
No primeiro vídeo com o novo posicionamento, divulgado em 27 de junho, o governo apresenta sua versão da luta de classes da era digital. A peça de um minuto, produzida por inteligência artificial, reforça estereótipos visuais e simbólicos.
A estética remete a livros e filmes clássicos como Os Miseráveis (1862), de Victor Hugo (1802–1885), e Germinal (1885), de Émile Zola (1840–1902), mostrando operários subjugados carregando sacos pesados com a palavra “imposto”, enquanto figuras engravatadas desfilam incólumes.
Ao fundo, aparece uma balança da Justiça desequilibrada: de um lado o povo sustentando os sacos; do outro lado, banqueiros e empresários com peso irrisório. Ao final, o narrador apresenta a proposta do governo de isenção do Imposto de Renda para quem ganha até R$ 5 mil e o aumento da taxação sobre os mais ricos e plataformas de apostas: “Taxação BBB: bilionários, bancos e bets. Justiça histórica. Justiça de verdade”.
Oposição reage à "taxação BBB" com paródias nas redesA dicotomia entre ricos intocáveis e pobres sobrecarregados ecoou no algoritmo das redes. Hashtags como #TaxaçãoBBB e #JustiçaTributária foram impulsionadas por influenciadores e canais simpáticos ao governo, o que animou o Planalto, geralmente malsucedido em batalhas virtuais.
Mas as respostas do Legislativo foram rápidas. A federação UPB, formada pelos partidos União Brasil e Progressistas, publicou no domingo (29) um vídeo rebatendo a narrativa petista. As imagens, com a mesma estética gerada por inteligência artificial, mostram sacos rotulados como “imposto” sendo empilhados sobre uma balança e outros sacos, identificados como “gastos”, arrastados com dificuldade pelo “povo” em carroças.
Diz o narrador: “Pensando bem, o povo não aguenta mais carregar o peso de um governo com quase 40 ministérios. Um governo que aumentou as despesas não para nós, mas para eles, a companheirada, e a gente carregando cada vez mais o peso nas costas, estatais que só dão prejuízo. Agora querem passar a conta para a gente de novo, dizendo que estão do nosso lado, mas imposto a gente sabe quem paga no final: os mais pobres.” Como assinatura, uma ironia: “Tudo o que eles [o PT] dizem é artificial, até a inteligência das propagandas”.
No mesmo sentido, uma paródia da campanha petista foi postada pelo governador de Minas Gerais, Romeu Zema, onde critica o governo por sufocar o povo com impostos e viagens milionárias. “É o BBB: mais um blá-blá-blá do governo Lula, sempre mentindo pra você... De um lado, Lula, Haddad e Janja; e, do outro, o povo sendo esmagado.”
O presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), acusou o governo de tentar polarizar o debate tributário para encobrir sua fragilidade política. “Quem alimenta o ‘nós contra eles’ acaba governando contra todos”, afirmou Motta em vídeo publicado nas redes na segunda-feira (30). “Capitão que vê o barco indo para o iceberg e não avisa, não é leal — é cúmplice. E nós avisamos que esse decreto do IOF não passaria.”
Recurso ao STF cristaliza embate entre PoderesNa terça-feira (1.º), com a decisão do governo de recorrer ao Supremo Tribunal Federal (STF) contra a derrubada do IOF, o embate se cristalizou, configurando um ponto de inflexão entre Motta e o governo Lula. Desde a derrubada do decreto, na semana passada, o deputado não atendeu aos telefonemas de Gleisi Hoffmann, ministra das Relações Institucionais, nem de Fernando Haddad, da Fazenda.
"Eu fiz uma ligação e estou aguardando o retorno. [Ele] tem que ficar à vontade também. O presidente Hugo Motta frequentou o Ministério da Fazenda como poucos parlamentares", disse Haddad nesta terça-feira.
No Planalto, a expectativa é de que Motta dê algum sinal de disposição ao diálogo nos próximos dias. Analistas duvidam e preveem que o próximo alvo dos parlamentares pode ser a Medida Provisória 1.303, que traz medidas para compensar o recuo da elevação das alíquotas do IOF. A medida está em vigor desde a publicação, mas perderá a validade se não for confirmada pelo Legislativo.
Paralelamente, o relator da reforma do IR, Arthur Lira (PP-AL), adiou a entrega de seu parecer, alegando a escalada da tensão institucional. Nos bastidores, a oposição e lideranças do Centrão resistem ao aumento de impostos e acusam o Planalto de tentar cobrir rombos fiscais sem cortar gastos.
Petistas intesificam mote da justiça tributáriaEnquanto isso, Lula e Haddad dobram a aposta na “justiça tributária” como lema das eleições 2026. Nesta quarta-feira (2) o presidente exibiu um cartaz contendo uma manifestação da campanha “Taxação BBB: Bilionários, Bancos e Bets” criada pelo PT durante caminhada em Salvador na comemoração ao dia da consagração da independência do Brasil. Lula compartilhou o registro nas redes sociais e disse: “Mais justiça tributária e menos desigualdade. É sobre isso”.
Em evento na terça, Lula havia voltado a criticar cobranças por responsabilidade fiscal por parte da gestão e afirmou que há "rebelião" quando o governo tenta elevar a tributação dos mais ricos.
"Quando a gente coloca que a pessoa ganha mais de R$ 1 milhão tem que pagar um pouco mais, é uma rebelião. Ou seja, nós estamos querendo que 140 mil pessoas paguem mais para beneficiar 10 milhões de pessoas", disse o mandatário.
Haddad também já havia intensificado o discurso. "Nós vamos continuar fazendo justiça social. Podem gritar, podem falar, mas chegou o momento de fazer justiça pelo Brasil", afirmou Haddad na segunda-feira (30).
"Vamos fechar todas as brechas para os jabutis [jargão político para benefícios fiscais inseridos em emendas]. No Brasil, jabuti é órfão de pai e mãe, ninguém assume a paternidade de um jabuti, que existe para beneficiar empresários. Cada vez que a gente remove um jabuti, tem a grita do andar de cima de que está aumentando imposto."
"Taxação BBB" não é política fiscal, dizem tributaristasPara tributaristas ouvidos pela Gazeta do Povo, os sucessivos “remendos fiscais” adotados pelo governo federal estão longe de atender a uma lógica de justiça tributária.
“É uma narrativa política bem-feita. Mas tecnicamente fraca, não resolve nada”, diz Maria Carolina Gontijo, professora da Escola de Tax. “E a ideia de justiça tributária, nesse contexto, vira apenas um slogan. A gente não está mais falando de tributação. A gente está falando de narrativa política. O BBB é uma campanha de marketing, não uma política fiscal.”
Para ela, a proposta de isenção para salários até R$ 5 mil beneficia apenas uma faixa da população e mantém as distorções para a classe média e para os contribuintes com renda um pouco acima da faixa isenta.
“Se estivéssemos mesmo discutindo justiça tributária, estaríamos falando de corrigir a tabela do Imposto de Renda como um todo, e não apenas até R$ 5 mil”, afirma.
“Isso é um Band-Aid em quem levou um tiro. Quem ganha R$ 7 mil vai continuar pagando a mesma coisa. O problema estrutural não é tocado. E, mesmo que esse ‘novo IR’ seja aprovado, ele não dura cinco anos. Os mais ricos vão se reorganizar, migrar recursos, e encontrar novos atalhos”, completa.
Renato Nunes, professor da Fundação Getulio Vargas (FGV-SP), diz que a condução da política tributária é feita de forma improvisada, sem planejamento ou revisão prévia das despesas do Estado. “A sensação é que está sempre no improviso, nunca planejado”, diz. “Em vez de revisar os gastos públicos para depois calibrar a carga tributária, o governo simplesmente aumenta os tributos.”
O professor também questiona a escolha dos alvos do governo — bancos, bilionários e bets — não pela pertinência, mas pela forma como estão enquadrados no debate.
“Ninguém discorda que bets devem ser taxadas. Mas o instrumento adequado não é o Imposto de Renda. A lógica aí deveria ser regulatória, como no caso do cigarro. As pessoas estão ficando viciadas, se endividando. O ideal seria usar IOF, IPI, ou o Imposto Seletivo previsto na reforma tributária.”
A crítica se estende ao chamado “imposto mínimo” de até 10% que o governo pretende cobrar de contribuintes de alta renda. “Além de ser complexo de aplicar, é pouco eficaz na prática”, afirma. “Os super-ricos acabam fugindo da base de tributação.”
Em contraponto ao argumento de distorções tributárias, Gontijo ressalta que as próprias gestões petistas foram responsáveis por grandes renúncias fiscais no passado, inclusive em favor de grandes grupos econômicos. E esse padrão se mantém.
“Mesmo em situação de calamidade fiscal, o governo segue aventando benefícios, como os que vimos para montadoras recentemente. E isso também beneficia bilionários. Onde está, então, a justiça tributária?”
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