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A Revisão Constitucional e uma Segunda Câmara

A Revisão Constitucional e uma Segunda Câmara

O suave fervor da suscetibilidade de uma revisão constitucional tem gerado, de todos os lados do espectro político, a elaboração de diversas ideias daquilo que pode ser uma melhoria à Constituição da República Portuguesa, face aos problemas e realidades que vivemos hoje e não existiam, ou não eram tão patentes, nos anos 70.

Ora, vozes há que defendem a criação de uma segunda câmara parlamentar em virtude das mais variadas razões, sendo, contudo, de destacar três: (i) uma tentativa de corrigir assimetrias representativas entre as regiões do interior e do litoral; (ii) dar voz a personalidades cujo contributo pode ser benéfico; (iii) simples simpatia pelo parlamentarismo inglês e francês.

De facto, o sistema eleitoral português aparenta graves limitações, sobretudo no que tange à diferença de representação entre círculos eleitorais, uma vez que o número de mandatos de cada círculo eleitoral é exclusivamente determinado pelo número de eleitores do círculo. Consequência disto é alta desigualdade territorial – sempre com prejuízo para os distritos menos povoados – e uma maior abstenção eleitoral por parte daqueles que sentem que o seu voto de nada valerá. Mais: a baixa representatividade e, de certo modo, baixa importância política, leva também a um baixo investimento público nestas áreas, precarizando a sua realidade.

Face a este cenário, não admira que uma das soluções cogitadas seja a da criação de um uma segunda câmara parlamentar, um Senado português, que vise a representação territorial. Porém, a questão não parece tão simples assim…

Vale recordar que em Portugal nunca vingou a tradição bicameralista. Já na monarquia constitucional consagrou-se uma segunda câmara, aristocrática, por compromisso com as antigas ordens e por receio daquilo que fora o terror da Revolução Francesa, em parte consubstanciada pela ditadura do Parlamento unicameral, nascido da fusão dos États Généraux – é de notar, a título de exemplo dos abusos da revolução, que o poder legislativo (o Parlamento francês) condenou à morte o titular do poder executivo (o Rei Luís XVI)! Aqui entre nós, realçou-se também a tentativa de fazer permanecer a influência da aristocracia numa altura em que se pedia a Portugal que se curvasse às ideologias estrangeiras que pouco lhe diziam e, como tal, pouco adaptadas à realidade nacional.

Porém, com a ascensão das ideias democráticas, o fundamento de uma segunda câmara perder-se-ia. Isto em virtude de algumas questões:

Primeiro, ou a segunda câmara assenta na mesma base de representação da câmara “baixa”, o que torna redundante a sua existência, sendo então preferível substituir o voto senatorial por referendo; ou a segunda câmara baseia-se numa representação distinta, o que entra em conflito com os princípios democráticos.

Segundo, o bicameralismo é a estrutura legislativa predominante nos Estados compostos, sendo quase inevitável a existência de duas câmaras nos Estados federados. A situação, contudo, muda de figura quando nos referimos a Estados unitários – como Portugal –, onde deixa de haver justificação sólida para manter um sistema bicamaral. – Exemplos como a Câmara dos Lordes, no Reino Unido, ou o Senado francês, subsistem essencialmente por tradição.

Terceiro, ainda que pudessem existir o interesse de consubstanciar um lugar parlamentar para se fazer ouvir as reivindicações de interesses sectoriais, a verdade é que uma câmara deste género – em todo ou em parte – jamais poderia, segundo a configuração imutável da Constituição, deliberar. Não obstante, existem hoje órgãos que fazem esse trabalho consultivo junto dos Órgãos de Soberania – como o caso do Conselho Económico e Social.

Assim, constata-se que nunca existiu em Portugal uma tradição sólida, seja histórica ou constitucional, a favor do bicameralismo. – A breve experiência da Câmara dos Senadores, criada pela Constituição de 1838, terminou com a curta vigência dessa mesma Constituição. Já a Câmara dos Pares, instituída pela Carta Constitucional, foi marcada por crises constantes e sucessivas tentativas de reforma. O Senado da Primeira República, consagrado na Constituição de 1911, refletiu as instabilidades do próprio regime. Por fim, a Câmara Corporativa da Constituição de 1933, apesar de nunca ter tido poder deliberativo formal, acabou por exercer, na prática, uma influência superior à da Assembleia Nacional, revelando uma distorção do princípio da representação.

Dito isto, falemos das razões que surgem para dar origem a uma nova câmara parlamentar:

Face à razão mais importante – a tentativa de correção das assimetrias representativas –, é do nosso entender que, para além da criação de um Senado não aparentar ter um bom acolhimento constitucional, parece-nos, também, de pouca conveniência política.

Ora, a verdade é que uma segunda câmara parlamentar só aumentaria o imbróglio que é a vida política e legislativa portuguesa, levando a que os procedimentos legislativos parlamentares se arrastassem cada vez mais – agravando a curiosa realidade portuguesa, na qual o Governo apresenta um ratio de legiferação superior ao do órgão legislativo por excelência, a Assembleia da República.

Ademais, não será de descurar os custos financeiros que um tal empreendimento acarretará – que podem ser, porventura, ínfimos no grande plano que é o Orçamento de Estado, mas, com certeza, pesarosos aos contribuintes.

Será, também, de referir os embaraços político que poderiam surgir em virtude do rumo protofederalista que uma câmara de representação territorial poderia apresentar – com o risco de, a longo prazo – quem sabe? – comprometer-se a unidade do Estado.

Por fim, a teoria do governo representativo foi concebida com base na representação da coletividade dos cidadãos como um todo, traduzindo-se no princípio da igualdade do voto. Esta é a teoria perfilhada pela Constituição e não parece ser de admitir, por isso, qualquer ponderação do valor do voto com base no território de residência dos eleitores.

Todavia, uma vez que o problema da assimetria subiste, não parece descabida a ideia de fundir os círculos eleitorais menores e a divisão dos maiores, de modo a reduzir a disparidade na relação entre votos. Também não parece extremado a criação de um círculo nacional destinado a eleger um certo número de parlamentares tendo em conta a totalidade dos votos expressos a nível nacional.

Quanto à segunda razão – a de dar voz a personalidades cujo contributo pode ser benéfico – basta dizer que Portugal é um Estado de Direito Democrático, o qual garante – ou tenta garantir… – a liberdade de expressão, pelo que determinada opinião poderá ser ou não acatada mediante a avaliação atribuída. E não só: hoje, o Conselho de Estado, embora de perfil mais restrito, compreende cinco Conselheiros nomeados pelo Presidente da República e cinco outros eleitos pela Assembleia da República. Outra razão para a criação de um Senado com vista a dar voz a “personalidades cujo contributo pode ser benéfico” que não esteja resolvida por estas duas “soluções” expostas, poderá ecoar duvida de se se não estará a procurar permitir poiso para uma oligarquia velada…

Em relação à terceira razão – a simples simpatia pelo parlamentarismo inglês e francês –, não é segredo que Portugal viveu – mais do que hoje – uma substancial dependência política e cultural inglesa e francesa. Do país cuja a moderna Administração Pública nasceu por influência, quase única senão mesmo unânime, da doutrina Francesa; e donde se tentou absorver, como se de esponja se tratasse, as doutrinas iluministas inglesas, americanas e francesas – ao ponto de, literalmente, combater território fora os “velhos” costumes (que não significa que fossem maus) e renegar a tradição que sempre acompanhara Portugal –, normal é que ainda hoje se sinta a necessidade de nos apresentarmos sob as vestes daqueles que alguns admiravam ou, por inconsciente histórico, admiram.

A verdade é que, se o bicameralismo destes países vingou, foi porque eles, naturalmente, exibem certas características histórico-culturais que só a eles lhes pertencem e que permitiram que assim fosse e seja. Portugal, por seu lado, unfortunately para uns, heureusement para outros, não parece partilhar dessas mesmas características, pelo que dificilmente se justifica romper mais uma tradição por documento.

observador

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